Tenho um pouco de dificuldade em viver nesse planeta. Às vezes me dá vontade de parar no meio da praça aqui perto de casa e gritar “socorro, nave mãe! Abortar missão! Quero voltar!” e só não o faço por medo de acabar indo parar no hospital psiquiatra. Meu problema é simples, na verdade: eu não me encaixo. Já tentei fazer de tudo. Mudei roupas, mudei telefone, mudei cor de cabelo e até mudei de endereço, mas o que eu não consigo mudar é minha atitude.
Nem sei exatamente a razão. Minha mãe diz que é porque eu tenho “coração bom”. No entanto, pra mim, coração bom não é um motivo para sofrer ostracismo social. Pelo contrário, acho que o coração bom é uma característica intrínseca do ser humano e, assim sendo, é fator que deveria uni-los acima de todas as diferenças. O problema é que o ser humano, com o passar dos anos, escondeu o coração bom atrás de várias muralhas de pedra, quase intransponíveis. Não porque queria protegê-lo a todo custo, mas porque achou que o melhor era mesmo soterrá-lo. O que deve ser valorizado foi distorcido a ponto de se tornar marginalizado, a sofrer ostracismo. Como eu.
O motivo pelo qual os humanos entraram nesse ciclo sem fim de massacre de sua essência original ainda me é desconhecido. Já ouvi algumas justificativas. Dizem que é por causa do capitalismo ferrenho. Outros defendem que essa coisa de coração bom é utopia das mais pesadas. Mais alguns comentam que essa distorção é um fenômeno que vem com a idade. E na justificativa de minha avó “isso tudo é falta de Deus, minha filha”. Talvez este não seja realmente o mérito da questão, nem o objetivo deste texto. Provavelmente se faz necessário um estudo das origens para soluções mais efetivas, mas, diante de tanta confusão e da minha marginalização constante, enquanto esse estudo e as propostas mais concretas não surgem, proponho tampar o sol com a peneira. Isto é, dar alguma solução temporária enquanto a solução do longo prazo não vem.
Acho, então, que devíamos começar com os pequenos detalhes. Só estou fazendo todo este monólogo pra contar um caso que ocorreu esta semana e tudo tem a ver com as muralhas individuais construídas artificialmente em cima da boa natureza de nossa espécie. Era segunda-feira, dia que, por definição, já é ingrato. Pra piorar, era segunda-feira, cinco e trinta da manhã. Se ainda puder ficar pior, eu estava a caminho da faculdade, do outro lado da cidade, que eu faço porque quero meu diploma, mas não chego a gostar de frequentar.
Mesmo assim, quando eu abri a porta e ouvi meu vizinho saindo pela dele, eu abri meu melhor sorriso e o cumprimentei. Ele portava uma mala pequena e se despedia da família como se fosse viajar por uns dias. O elevador chegou. Eu esperei ele terminar as despedidas, segurando a porta com um pouco de dificuldade. Percebendo, ele ainda se demorou por alguns segundos, mas, então, andou despretensiosamente até onde eu estava. Entrou no elevador, apertou o botão do andar que iria, ouviu meu “bom dia” e só então se dignou a sorrir de volta.
Descemos em silêncio. Eu tinha pressa, então, quando chegamos à portaria, agilizei os passos na direção da porta de ferro que me separava da rua. Quando lá cheguei, olhei para trás para ver se ele tinha acompanhado meus passos largos ou se sua valise o tinha atrasado. Constatei que ele estava longe, mas não longe o bastante para que fosse educado eu sair na frente dele sem segurar o portão. Novamente me vi na situação de porteira. Atrasada, segurei o portão fétido de ferro gelado naquela manhã mais gelada ainda com um sorriso. A grande questão do acontecido e que me motivou a escrever isso tudo é que, ao passar pela porta aberta, o meu vizinho viajante, esqueceu-se de me agradecer.
Não me levem a mal. Não faço o que faço porque quero ser agradecida. Acho que com o coração bom vem também toda uma veia altruísta. Ou talvez eles sejam sinônimos. Enfim, continua não sendo o caso. O que realmente conta é que, ali, segurando aquela porta pesada e sentindo o orvalho fino da manhã, comecei todos os questionamentos que me fizeram chegar a esse texto.
Então, minha sugestão fica sendo esta: um reforço de nossa gratidão. Não acho que meu vizinho tenha propositalmente evitado me agradecer. Creio que, distraído em puxar a mala e chamar um táxi, ele tenha acabado se esquecendo. Assim como alguns outros vizinhos se esquecem de cumprimentar o porteiro, ou agradecer a gentileza do motorista de táxi que sai para abrir a porta. Acabamos achando que as pessoas tem o dever de nos fazer esses pequenos serviços ou acabamos tão distraídos e focados na própria vida e no próprio umbigo que nos esquecemos de olhar para o lado e demonstrar nosso agradecimento sincero.
Pode parecer inútil para causar algum tipo de revolução que venha a derrubar as pedras do ser humano. Todavia, gratidão é um sentimento tão único que pode ser capaz de puxar uma cadeia de outros sentimentos que, ligados, podem ajudar neste terremoto interno. Talvez assim eu consiga me sentir incluída, me sentir parte do mundo e eu não precise abortar minha missão. Engraçado esse uso de termos. Missão. Talvez a minha seja justamente essa: ser britadeira.
Por Clara Savelli
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