O homem está de volta: Shyamalan traz a luz seu último projeto, “Batem à Porta”, um roteiro adaptado que promete, senão trazer unanimidade, suscitar opiniões fortes e, seja qual for sua relação com os filmes do cineasta, esta é mais uma autêntica caixa surpresa de sua filmografia. Confira abaixo a crítica sem spoilers.
Quando as coisas NÃO dão a volta
A fina ironia: quando um filme, música, jogo, etc. te fala algo, querendo te dizer exatamente o contrário. “Batem à porta” é adaptação do romance “O chalé no fim do mundo”, de Paul Tremblay, com uma base fácil de ser comprada: invasão (violenta) à vida privada.
Logo ao início da trama, seguindo uma de um rol de apresentações exaustivamente didáticas dos (literais) quatro cavaleiros do apocalipse, o grupo tenta deixar claro que não tem nada contra Andrew e Eric, e que só souberam ali mesmo que sua “missão” antiapocalíptica seria contra um casal gay e sua filha. Pronto! Problema resolvido, eles não são homofóbicos, certo?
Vamos com calma. Embora este artigo não pretenda pesar em cima de algum juízo de valor de como se deve ou não tratar temas delicados — sobretudo porque não se trata de proibir ou “cancelar”, mas discutir — não se pode passar por cima do argumento do filme que é o começo para sua espiral ao inferno.
O fato da família em jogo não ser a tradicional nuclear já acende uma lâmpada na cabeça, mesmo dos desatentos. Seria questão da obra em si não ter qualquer ensejo senão a representatividade? Isso já acontece; minoria: você também pode ter o gosto de ser coisificada em filmes industriais medíocres — que tal “Um Crush para o Natal” (2021) e “Invasão” (2018)? Que por muito são mais do mesmo, quando não tropeçam nas próprias armadilhas que criaram.
Deixemos algumas coisas claras: isto não quer dizer que não possam existir filmes do tipo; representatividade é importante, porém, não se pode ignorar que, assim como tudo na sociedade, vira moeda de troca dentro de uma estrutura maior; não é porque algo está retratando uma minoria que deva incluir um debate sobre preconceito contra a mesma. Tudo certo? De volta ao assunto.
A verdade é que não é uma escolha inocente. Uma família gay deve se sacrificar em prol do coletivo, negar a si mesma e passar por todas as violências físicas e psicológicas possíveis para restaurar a ordem social. É preciso que Andrew, Eric e a garota imigrante — como o mundo é cheio de coincidências, não é mesmo? — mesmo cuidando de suas próprias vidas, se aniquilem diante dos mensageiros irracionais.
Que mensagem impactante, não? Em uma leitura superficial, uma primeira resposta que se obtém é um discurso pró violência, o que é um equívoco, pois o pretendido é justamente o oposto. Embora não figure como um acerto, a tentativa de provocação é interessante, mas não convence, pois parece que o verdadeiro armagedom é a produção deste filme.
Falta potência
“Knock at the Cabin” tenta, mas falha, que o seu universo inspire verossimilhança. Acreditar neste universo passa essencialmente por não haver aqui vilões e mocinhos bem definidos, o que poderia ser uma grande oportunidade de trazer sutileza, se esses não fossem avatares da mediocridade. Os “carrascos” cumprem apenas ordens, ou ao menos assim o dizem; no ponto de vista deles, suas mortes são evitáveis o quão rápido o trio decida quem deve morrer.
Enquanto se empilham soluções fáceis para a trama, a atuação canastrona de metade do elenco não ajuda em criar empatia, senão trazer — diluído — valor de choque. As cenas de flashback de um passado feliz em família do trio contribuem para a impressão de que o diretor, Shyamalan, mirou demais ao céu: são recortes do tempo, sem uma montagem perspicaz.
Tendo uma história com inspirações diretas da bíblia cristã, tinha-se um presente e tanto nas mãos para subverter as coisas de maneira mais inteligente do que as liberdades tomadas na adaptação.
Publicada originalmente em 2018, a história ganha contornos ainda mais complexos com o crescendo de hostilidades contra os LGBT+, imigrantes e minorias em geral. O que se apostou, no entanto, foi em simbolismos fracos, tópicos tão amplos quanto vida e morte que não são semioticamente aprofundados além da maçante referência direta.
Tomando como exemplo as notícias que deixam o espectador em dúvida se o fim do mundo é ou não real, e que o grupo faz a família assistir — supostas provas de que anunciam a verdade — como essas catástrofes não comovem, são apenas números e notícia, além do personagem Andrew sempre rebater com explicação racional, estaria aí uma ótima linha narrativa, que tampouco é levada a sério; a inércia da modernidade.
Aliás, o querido cônjuge de Andrew, Eric, só não é mais fora do tom que a presença relâmpago (e mau gosto) — para a felicidade comum — de Rupert Grint como o primeiro cavaleiro. Sendo preciso, as únicas pessoas verdadeiramente bem, e não apenas ok, são Kristen Cui como a pequena Mei e Dave Bautista, como Leonard — carregando o longa até onde possível.
Então ouvi uma voz alta vinda do templo dizendo aos sete anjos: “Vão e derramem na terra as sete tigelas da ira de Deus. Então o primeiro foi e derramou a tigela na terra e surgiram feridas, malignas e dolorosas, nos homens que carregavam a marca da besta e naqueles que adoravam sua imagem.
Apocalipse 16:1–2, tradução própria do grego.
Há ainda um valor na habilidade de Shyamalan, como os enquadramentos inteligentes já provados em sucessos seus, como “Fragmentado” (2016) e “O Sexto Sentido” (1999) — esse conjunto não é de longe suficiente para salvar este naufrágio anunciado, que por alto é pretensioso, e de perto não tem substância.
Em uma última análise, talvez o grande plot twist seja que Shyamalan precise de alguém para lhe constatar o óbvio de vez em quando. Em poucas palavras, é ruim, mas não é “O Último Mestre do Ar” (2010), e uma adaptação de “Hellstar Remina” (2005) seria de melhor tom, claro que com outro diretor.
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