Ícone quase irretocável na memória da animação ocidental, “Avatar: O Último Mestre do Ar” (2024) chega a Netflix adaptando o já clássico desenho estadunidense de 2005. Com um passado não tão feliz em formato live action, esse pode ser momento sa franquia de se reinventar e trazer mais conteúdo ainda nessa década da franquia. Fomos conferir o grande lançamento da semana e deixamos nossas impressões da primeira temporada nessa review sem spoilers.
Talvez haja guerra em Ba Sing Se
Quando a adaptação às telonas de Avatar foi lançada em 2010, o diretor M. Night Shyamalan se consagrou na infâmia com uma das transposições de mídia de maior fracasso entre crítica e público. Anos mais tarde, um ambicioso projeto vem com a promessa de resgatar o espírito da animação estadunidense, será que é possível romper com os estigmas?
Estigmas, no plural, porque a Netflix vem de um longo histórico de adaptações criticadas. Adaptar materiais de sucesso é expectativa de retorno fácil e de um público fiel, cativado, pronto para fazer propaganda gratuita e consumir. Não por acaso são frequentes acusações de “cash grab“: investindo pouco ou muito, há certeza de retorno.
Esse não parece ser o caso de Avatar, que colheu as críticas de seu predecessor em dois principais frontes: passo e escalação. Além de um elenco diverso e que não se rende às falhas de Shyamalan, com o maior tempo de tela a duração da primeira temporada da série e do desenho estão relativamente muito próximas, dando espaço para desenvolvimento adequado de personagens — e em um universo enorme como o de Avatar, reduzir isso tornaria a experiência sufocante, confusa e rasa à audiência.
Mudanças pequenas, efeito borboleta
A primeira grande mudança que o espectador tradicional deve sentir é que o tom da série é ligeiramente diferente do cartoon. Enquanto o desenho equilibra bem cenas de comédia e drama, a comédia na série é diluída em prol do segundo. Essa não é uma exclusividade da adaptação, que tem que buscar outras alternativas que cabem melhor no formato animação, como expressões exageradas e caricatas.
Essa é uma mudança coerente, visto a mira em um público mais velho — sem perder o frescor de “A Lenda de Aang” — buscando uma visão mais cética e no fardo da guerra de um garoto de doze anos, com sentimento de culpa de um genocídio sobre seus ombros. Por causa disso, Aang tem um tom menos brincalhão e mais melancólico, embora aja como alguém de sua idade.
Para quem acompanhou as notícia, uma das mudanças que mais causou revolta/preocupação nas redes sociais antes da estreia — e com razão — foi atenuar o machismo de Sokka, parte de seu desenvolvimento de personagem na animação. Na versão em live action, não é que isso tenha desaparecido, mas compete mais com os arcos individuais de cada um: Sokka e suas ansiedades como chefe de tribo, Katara com sua jornada de descoberta e relação com a desigualdade de gênero. Nesse sentido, os dramas e inseguranças ficam mais marcados — uma mudança positiva; não melhor, mas diferente.
Sokka é um dos destaques positivos da produção. Mais sarcástico do que zombeteiro, sua atuação se mantém consistente e Ian Ousley entrega um Sokka interessante e charmoso, que não apenas faz a sua parte como deixa que desafinos nas interações de elenco sejam menos ruidosos. Não há ninguém realmente mal, incluindo o mais jovem do trio inicial, Aang, por Gordon Cormier (atualmente com 14), no qual a voz da inexperiência parece gritar mais alto que a magia da série aqui e ali.
No trabalho de adaptar — que não deve em nada uma reprodução (impossível) de igual para igual — escolhas são feitas, e por menores que sejam pouco a pouco elas vão inviabilizando aspectos posteriores. Nesse review não detalharemos cada ponto, mas pontos do plot original foram movimentados para o início, enquanto detalhes pequenos a princípio impossibilitam algumas cenas queridas que os fãs poderiam ter em mente.
Em apologia a “O Último Mestre do Ar” (2024), a série faz um trabalho melhor em apresentar pontos de roteiro que são tratados como menor importância na animação, potencializando a carga dramática. Isso está longe de ser perfeito: o costume da Netflix de encomendar oito episódios invariavelmente fez pesar, com arcos menos bem desenvolvidos, a falar de Omashu — especialmente com o bando de Jet — e na Tribo da Água do Norte; 2 episódios extras deveriam resolver a situação.
Falando em Omashu (primeira metade), as coisas acontecem tão freneticamente que o próprio roteiro se atropela. Por que empatizar com os novos personagens se há tão pouco tempo de tela e a direção não dá muita margem para criar uma zona de dúvida cinzenta na cabeça de quem assiste?
Nesse meio tempo, a série fez uma pequena mudança, trazendo a história de fundação da cidade uma temporada antes, e tornando os fundadores um casal sáfico — embora não tenha implicações no futuro, isso é um lembrete que canonicamente no universo de Avatar relações consensuais entre o mesmo gênero não são vistas da mesma forma que na história ocidental — o que é abordado mais a frente na franquia — e que aqui ganha contornos de um inofensivo (e bem encaixado) fanservice.
Outro exemplo disso ocorre nos últimos episódios envolvendo a personagem Katara, essa última nem tão bem acertada — não pela temática, mas porque a série não deu espaço para preparar o terreno até ela — o que não a torna desagradável, mas um ruído de verossimilhança. Modo geral, há um cuidado em fazer uma hora de episódio ser aproveitada ao máximo, e nisso a direção mais acerta do que erra.
…E trazer harmonia ao mundo
Como pontuado, uma história boa não é receita para sucesso, e o diferencial de Avatar (2024) é reverenciar o material original — dando acenos aos fãs clássicos (alô, homem do repolho) — mas olhando para um novo público. Veja o caso de “Beleza Verdadeira”: adaptado de webtoon para dorama e então anime, quem acompanhou uma versão não necessariamente vai estar interessado na outra.
Com exceção já de evolução apressada em dadas partes da trama, orçamento não é necessariamente o problema: os visuais estão bonitos, a trilha sonora em dia e, no possível, o mesmo pode se dizer do roteiro, que recebeu mudanças significativas e não dá impressão de uma cópia (inferior) desprovida de alma, como o caso de quando a direção leva a produção para um lado muito literal, vide “Rei Leão” (2019).
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Para não deixar de falar, a caracterização também está bem feita, muito superior aquela de catorze anos atrás, porém isso não é um absoluto — a título de exemplo, a peruca dada à personagem Yue (Amber Midthunder) é um exemplo de atentado ao bom gosto, e que consegue quebrar o envolvimento com o universo ao ponto de lembrar a audiência que aquilo é uma ficção — e quem dera isso fosse um exagero.
Em retrospecto, “Avatar: O Último Mestre do Ar” (2024) é um excelente acerto da Netflix, e não restam dúvidas que mais da série esteja a caminho, embora a produtora não tenha divulgado nada oficialmente. Apesar dos review bombings de um público muito apegado ao original, a série tomou rédeas e fez escolhas importantes e com coerência interna. Sem dúvidas, ainda há o que melhorar, mas que sejam dados os louros quando finalmente acertam em uma adaptação, sobretudo de um universo de tão difícil tradução.
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