O Outback australiano pode ser assustador. Em “Cargo”, porém, o perigo não vem da vastidão desértica, dos animais venenosos ou da ameaça de ladrões e sequestradores, mas sim da epidemia que contaminou a cultura pop nas últimas duas décadas e parece não dar sinais de melhora: os mortos-vivos.
Sorte que o longa de estreia de Ben Howling e Yolanda Ramke, novo título “Original Netflix”, surpreende pela consistência com que trabalha o imaginário do gênero. Adaptação do curta-metragem homônimo que viralizou na internet em 2013 – e foi finalista no maior festival de curtas do mundo, o Tropfest -, o filme visita fórmulas já conhecidas das ficções pós-apocalípticas, mas a partir delas faz um delicada reflexão sobre a força de laços familiares.
Andy (Martin Freeman) é um homem que ao lado da esposa, Kay (Susie Porter), e da filha pequena, Rosie (Finlay e Nova Sjoberg), tenta sobreviver a uma crise biológica em que os seres humanos estão se transformando em criaturas sem consciência, movidos apenas por um impulso canibal. Vivendo em um barco com destino à base militar mais próxima, a família tem sua razoável estabilidade perturbada quando a mãe é mordida ao procurar por suprimentos em um iate abandonado.
A partir daí, segue um efeito dominó: com 48 horas para a transformação total de Kay, Andy decide que a melhor solução é ir para terra firme atrás de ajuda médica, entretanto, antes desse tempo, acaba infectado pela própria mulher. Sozinho com seu bebê, resta a ele procurar alguém que possa ser responsável pela criança. Nessa busca, seu caminho cruza com o de Thoomi (Simone Landers), uma garota aborígene que cuida do pai (Bruce R. Carter), também zumbificado.
Transformar um projeto de sete minutos em outro de quase duas horas nem sempre é uma missão bem-sucedida – caso da também exclusiva produção da distribuidora de streaming, “Eu Não Sou um Homem Fácil” -, mas o roteiro assinado por Ramke alcança esse feito com dignidade. A partir da situação-problema, o pai que em breve se tornará um perigo para a própria prole, ela consegue entrelaça-la com êxito a questões como a fragilidade humana em conjunturas adversas e a repetição das relações de poder entre o homem branco e os nativos aborígenes, fantasmas do colonialismo na Austrália.
Discussões que ganham peso na tela com o trabalho de direção da dupla. Quase como o olhar de um entidade superior sobre os que vagam sem rumo no pós-apocalipse, a câmera passeia, através de planos aéreos, pela vegetação árida do Outback, materializando a pequenez dos protagonistas nessa realidade hostil. Silhuetas e o pouco foco resultado de uma profundidade de campo restrita, decisões também da fotografia de Geoffrey Simpson, tiram o holofote do ataque dos mortos-vivos, reforçando que “Cargo”, ainda que seja um filme de zumbis, é mais sobre pessoas tentando manter-se conectadas a sua própria humanidade.
Há, claro, os horrores em conviver por semelhantes que se alimentam de carne humana. Howling e Ramke, através da lógica de seu longa, trazem elementos interessantes para a mitologia desses monstros, como, por exemplo, sua necessidade de hibernar no escuro. Idiossincrasia que traz imagens fascinantes, já que para encontrar trevas no meio do deserto, eles instintivamente enterram suas cabeças na areia. Ainda assim, pouco vemos os infectados e sabemos sobre as origens do contágio; eles são mero instrumento para falar dos que vivem.
Sendo esse o objetivo, Martin Freeman e a estreante Simone Landers fazem um excelente trabalho. Honesto, o ator inglês interpreta o pai de família como uma figura conciliadora, que tenta se mostrar sob controle da situação, mas que por dentro sofre com a possibilidade de perder a esposa e machucar a própria filha. Em um ponto da trama, é melancólico ver ele, mesmo coberto de sangue e sabendo que está infectado por algo que matará sua consciência, se mostrar tranquilo para acalmar seu bebê. Já a jovem atriz impressiona por sua expressividade, ainda mais se pesarmos que o primeiro ato Thoomi pouco fala, e mesmo assim sabemos com ela se sente.
Entretanto, mesmo com muitas qualidades, “Cargo” não é perfeito. Sua sobriedade é admirável, mas talvez falte eloquência para ser lembrado como títulos do subgênero que vieram depois dos anos 2000, como “Extermínio” (2002), “Todo Mundo Quase Morto” (2004) e até o recente “Invasão Zumbi” (2016). Ainda assim, em se tratando da qualidade dos últimos longa-metragens “Original Netflix”, é uma surpresa mais que bem-vinda.
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