O clássico texto de Plínio Marcos publicado em 1978, Dois perdidos numa noite suja, ganha o acréscimo “delivery” na recente montagem apresentada no Teatro Aliança Francesa. Esse acréscimo em nada altera o texto original, que se mantém intacto, mas o atualiza ao inseri-lo no contexto de dois moradores de uma moradia estudantil universitária que trabalham como entregadores de aplicativo. A proposta da atualização do contexto, bem como o recurso do audiovisual, corroboram para entregar ao público excelência em todo o espetáculo.
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Em linhas gerais, “Dois perdidos numa noite suja – Delivery” acompanha a história de Tonho e Paco, dois colegas de um quarto sujo de uma moradia estudantil que trabalham como entregadores de aplicativo para se manterem. Tonho vem de uma cidade do interior e deseja melhorar de vida, sendo uma figura centrada, enquanto Paco é impulsivo, desconfiado e vive apenas para o agora. O contraste dessas personalidades movimenta os acontecimentos da história e o pilar central é o desejo de Tonho em ter os sapatos novos que Paco tem, o que facilitaria com que ele consiga um novo emprego, como diz, porque seus próprios sapatos estão velhos. Paco, contudo, se recusa até a emprestar o sapato, com o receio de ser enganado pelo colega, ao mesmo tempo que existe um subtexto de não desejar que ele saia dali. Após um conflito com o personagem Negrão, que nunca aparece, Paco convence Tonho a praticarem um assalto, o que garantiria que Tonho roubasse um par de sapatos e que repartissem os objetos roubados depois. Ao final da peça, após uma briga entre eles em que Paco leva Tonho ao limite, ocorre um assassinato.
A cenografia da peça é formada na cena por dois colchões velhos e duas mochilas de entregadores de aplicativos, ambientada em um quarto de uma moradia estudantil, atualizando a proposta de Plínio de ser em uma “hospedaria de quinta categoria”. Embora a proposta do texto original deixe o extracênico subentendido, como tradicionalmente acontece nas peças, a montagem atual ganha vitalidade e explora o potencial da narrativa ao ampliar o mundo em que ocorre, ora representando nas telas dispostas no cenário as gravações ao vivo, ora utilizando vídeos gravados. Tal escolha da mescla entre as duas linguagens aprofunda ainda mais os acontecimentos da trama.

Como exemplo, a cena do assalto não é representada no palco, é apenas mencionada no texto original. Entretanto, a montagem atual usou uma gravação para mostrar como foi esse assalto, vê-se para onde o Paco vai, as entregas e as condições dos entregadores de aplicativo, entre outros. De modo similar, a cena final projeta ao vivo nas telas a expressão facial de Paco quando Tonho aponta a arma para ele. A escolha e uso do audiovisual foi excelente.
A cena de abertura da peça apresenta Paco se masturbando para um vídeo pornográfico gay, o que não consta no original. Entretanto, essa cena é crucial para criar a ambientação do espetáculo, pois nela somos posicionados historicamente na atualidade (diferente do final dos anos 70 do texto de Plínio), há o uso do telão e do cenotécnico que transita pelo cenário com a câmera, o que introduz a linguagem cinematográfica, bem como a leitura de Paco como um homem com interesse em homens (não necessariamente gay, pois na peça ele expressa gostar de mulheres – o que abre o leque para várias interpretações do personagem). Uma vez que o texto original segue quase intocado, é nítida que a hermenêutica do trabalho consegue atualizar e acrescentar a produção novas camadas, tornando o espetáculo ardente como brasa.
Os personagens Paco e Tonho são o epicentro do espetáculo, apenas eles estão em cena. Entre eles, a hierarquia dramática é bem dividida e opera como um jogo de convencimentos e resistências de ambos os lados, dada a relação entre eles não se estabelecer afetivamente, mas materialmente. Dessa forma, enquanto Paco é traiçoeiro, gosta de provocar e não acredita que sua vida mudará, Tonho é mais equilibrado emocionalmente, odeia o lugar em que mora e deseja ter uma ascensão social, que acredita ser possível apenas por meio do estudo e de um trabalho, algo constantemente mencionado por ele ao longo das cenas. Essas personagens tão distintas são obrigadas a conviverem juntas, o que promove as discussões e brigas, não há, por exemplo, uma cena que expresse amizade entre eles, ainda que Paco goste de Tonho. A relação entre eles se dá como fetiche de mercadoria.
Tonho é interpretado por Lucas Rosário, e embora seu personagem seja “comportado”, que quer seguir um caminho “certo”, a modulação da voz, do corpo e as expressões faciais são muito contidas, o que se vê em uma atuação um pouco tímida e sem expressividade significativa no primeiro ato. Contudo, no segundo, que inicia após o assalto, sua atuação é visceral, o que fica muito claro inclusive em sua respiração, incorporando um Tonho precioso.
Paco, por sua vez, é vivido por Michel Pereira e a qualidade de sua atuação pulsa a ponto de transbordar no palco. Sendo seu personagem um despejo qualquer, a serpente que penetra no Éden de Tonho e pinga em sua orelha o pecado original, não há muito o que se trabalhar, tendo em vista não ter um arco claro, cujo vazio foi introjetado pela leitura de sua homossexualidade. Ainda assim, Michel está impecável, imbuindo em sua atuação expressividade corporal e vocal, bem como uma interpretação madura e notável.
O fôlego da afinidade entre os dois atores e seus personagens compõe, nos 90 minutos de “Dois perdidos numa noite suja – delivery”, um universo palpável que não torna a peça morosa, regendo com extrema maestria as emoções da plateia em todos os momentos.

Imagem: Fotografia / 8Bees
Como dito repetidas vezes, o texto não foi alterado, mas atualizado abordando a demanda dos entregadores de aplicativo. Se os contrastes entre os personagens são criados pelo diálogo, ele também se cruza com a narrativa ao reforçar suas invisibilidades sociais, que vivem em condições de extrema precariedade e se tornam reduzidos à suas funções, levados à exaustão após o período pandêmico – momento histórico em que a montagem acontece. Os personagens são apenas objetos descartáveis no jogo do emprego, daí suas condições de viverem em um alojamento estudantil, o que existe de valor entre eles é apenas as mercadorias que transportam, transformando-os em trabalhadores em condições sub-humanas, onde o tempo de entrega significa propriamente dinheiro. Paco se conforma e não vê uma saída dessa situação que não seja pela criminalidade, enquanto Tonho acredita que seus estudos, trazidos na montagem para o mundo universitário na atual melhor faculdade do país, que irão impulsioná-lo para a saída da invisibilidade. Ao concluir que Paco tinha razão, o assassina.
Diante disso, “Dois perdidos numa noite suja – delivery” emerge como uma leitura atualizada e perspicaz do clássico texto de Plínio Marcos. A escolha do uso do audiovisual para mostrar cenas que eram apenas mencionadas no roteiro original, revela uma direção inovadora e eficaz. Textos clássicos são fáceis de serem alterados para servirem as abordagens dos grupos que os montam, a dificuldade existe em manter o original e a partir dele criar novas camadas, o que acontece com primazia nessa montagem.

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