O mito de Orfeu moderno porém clichê
Se é para realizar mais uma história superficial sobre um amor superficial, que pelo menos ele esteja inserido num cenário nunca antes trabalhado no cinema. “A Garota Da Canção”, de Ibai Abad, é o primeiro longa-metragem filmado durante o Burning Man – uma espécie de festival de contracultura, realizado anualmente desde 1986 em Black Rock Desert, no estado americano de Nevada que costuma atrair mais de 50 mil pessoas.
Eric (Lewis Rainer) – um típico jovem tímido – conhece Jo (Joséphine Berry) quando ela, literalmente, cai de uma árvore em cima dele. O estudante universitário é músico, enquanto Johanna é uma garota de espírito livre, meio hippie, sem muitas perspectivas e amarras – ela adota aquela velha premissa de viver intensamente. Garoto certinho se apaixona pela garota rebelde – já ouviu essa estória antes? Pois é. Com esta trama o seu desfecho se torna bem previsível: paixão arrebatadora, ruptura – porque obviamente quem é livre foge de compromisso – e, claro, o reencontro.
Até Jo sair pelo mundo afora sem se despedir, o filme não prende o espectador em nada. Apesar dos atores estarem bem em cena o roteiro de Natalia Durán e Elisabet Mainez é tão clichê que não nos deixa com aquela vontade de torcer por eles. A construção do relacionamento dos dois é corrida e um pouco sem justificativa – a atração dos dois acaba por ficar à mercê do clássico “amor à primeira vista” – Como se não houvesse um motivo real para uma verdadeira conexão. Porém, quando estamos falando de um amor adolescente, quem precisa de razão não é mesmo? – essa parece ser a desculpa que o próprio filme arrumou para si.
Quando Burning Man entra em cena e seguimos a trajetória de Eric em busca de sua namorada pelo deserto as coisas começam a ficar mais interessantes. Baseado no mito do Orfeu – um músico que vai para o mundo dos mortos para resgatar a alma de sua amada Eurídice – o diretor quis inserir seu protagonista num verdadeiro inferno para ele, o que funciona bem, Eric é claramente um estranho àquele nicho. Chegando lá, recebe a orientação de um personagem semelhante a Caronte da mitologia grega, o barqueiro que leva as almas pelo rio do mundo inferior. Num táxi, o motorista cria uma empatia instantânea pelo jovem e deveria transmitir a ele sabedoria, mas o texto e a construção do ator acabaram por transforma-lo num cara meramente maluco que milagrosamente ajuda um estranho.
A direção de arte é um trunfo da produção. Cada elemento underground do festival é encantador e harmonioso – por se tratar de um evento artístico fora dos padrões era de se esperar que a fotografia se valesse disso para embelezar as sequências. Infelizmente tudo vai por água abaixo quando algum personagem aleatório lança diálogos estereotipados sobre o evento – como por exemplo desconhecidas que se aproximam de Eric com os seguintes dizeres: “Estou me sentindo muito conectada a você” e logo em seguida o rapaz aparece transtornado sob efeito de alguma droga. Delinear a personalidade das pessoas que frequentam esse tipo de festival desta forma tão caricata já desqualifica o cenário como algo inovador – parece colocar o evento como mais uma mera bagunça entre hippies adeptos do amor livre.
Lewis Rainer faz jus ao seu dom musical e quando canta realmente prende a quem assiste, enquanto Joséphine fica limitada aos clichês de sua personagem – uma garota britânica que quer viver da sua arte alternativa de marcenaria e passa seus dias explorando o estilo sexo, drogas e rock’n roll– convenhamos que já existem muitas Jos por aí para se apaixonar justamente por essa que não traz nada de novo. Como o filme está disponível na Netflix, vale a pena ser assistindo por românticos incansáveis que se encantam com qualquer casal apaixonado e por quem estiver curioso sobre o Burning Man. Quem estiver sem muitas opções do que assistir, pelo menos tem a garantia de curtir uma boa trilha sonora.
Por Rayza Noiá
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