“Não sou ninguém. Sou apenas a presença de uma ausência.”
Os minutos iniciais de “Quase Memória”, esperado retorno de Ruy Guerra (“Os Cafajestes”, “Os Fuzis”) ao cinema, já antecipam a peculiaridade do projeto. Enquanto a voz do realizador moçambicano recita enigmáticos versos, imagens pantanosas tomam conta da tela. De maneira análoga a esse horizonte turvo, no qual informações se misturam e se perdem, operam as lembranças, tema principal do longa-metragem.
Para falar sobre memória, o filme, de acordo com o próprio diretor, vira do avesso o bestseller de Carlos Heitor Cony, vencedor do Prêmio Jabuti em 1995. Ao passo que o recém-falecido escritor narrava as recordações do pai a partir do encontro entre Carlos – ele mesmo – e um misterioso pacote, a adaptação dissocia o protagonista em dois: um mais jovem (Charles Fricks) e outro mais velho (Tony Ramos). A lembrança individual alcança, dessa forma, um caráter coletivo, compartilhado entre as duas versões do “eu”. Afastadas 26 anos – entre a instituição do AI-5 e a morte de Ayrton Senna -, as personagens convivem no microcosmos de um pequeno apartamento. Nessa “bolha do tempo”, como chama Guerra, a dupla reconstrói a figura do pai, o jornalista Ernesto Campos (João Miguel).
No roteiro, elaborado em parceria com Bruno Laet e Diogo Oliveira (“O Homem que Matou John Wayne”), “fantasmas” presentificam-se. Entre eles, por exemplo, o crítico Mário Flores (Julio Adrião) interpela Carlos e oferece novas histórias do amigo Ernesto. À medida que os diferentes relatos sobre esse mesmo homem colocam-se em embate, ele ganha vida no corpo de João Miguel (“Estômago”, “Xingu”, “3%”). Sua atuação, assim como as de Fricks (“Doidas e Santas”, “Nise – O Coração da Loucura”) e Ramos (“Se Eu Fosse Você”, “Getúlio“), não esconde a inspiração teatral. Por meio do exagero dos gestos e das quebras de quarta parede, o elenco aproxima-se, portanto, de uma dimensão performática.
O paralelo com os palcos, porém, não invade o longa-metragem somente nas interpretações. Aproveitando-se de técnicas de iluminação cênica, o fotógrafo Pablo Baião (“Para Minha Amada Morta”, “Um Filme de Cinema”) alterna luzes e sombras. Por trás desse recurso, não meramente estilístico, desenha-se um diálogo com a lógica da memória. Lembrar, afinal, nada mais é que lançar a luz sobre algo. Os detalhes rememorados, desse modo, recebem especial atenção na composição dos planos. A metáfora das luzes consolida-se, ainda, na imagem do balão, repetida ao longo da narrativa. Como explicitado em fala, as lanternas dentro do objeto voador escrevem uma história de liberdade. As lembranças, da mesma forma, propiciam uma espécie de libertação, a do aprisionamento do momento. Por meio delas, em outras palavras, o sujeito pode estabelecer relações entre os tempos e tornar presente o passado.
Três anos após receber o Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio, “Quase Memória” finalmente encontra lugar no circuito comercial. Apesar do longo intervalo, a discussão levantada pela obra dialoga – e muito – com o momento atual. Em um cenário de retrocessos e incertezas, a simples atitude de lembrar-se ganha contornos políticos.
O filme marca, ainda, a volta de Ruy Guerra, expoente do Cinema Novo, após uma década de inatividade. O resultado, uma eloquente e bem-humorada reflexão sobre a memória, aumenta a expectativa em torno de seus novos projetos. O próximo, segundo ele, radicalizará a veia experimental já presente em seu antecessor. Enquanto isso, contudo, resta ver e rever “Quase Memória”. Trata-se, enfim, de um trabalho fecundo, ainda que não alcance todo o seu potencial ensaístico.
* O filme estreia dia 19, quinta-feira.
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