O universo de Ariano Suassuna traz às páginas e cenas que compõem a sua obra o retrato de um Brasil resiliente: A imagem de um povo que lida com as agruras da seca, da concentração de riqueza, da fome, do solo rachado… com força, coragem e senso de humor. A narrativa trazida por esse dramaturgo e poeta paraibano descreve (além da realidade sertaneja) a forma como as relações de poder se delimitam, e é uma crítica contundente a um Brasil que (infelizmente) se mostra atemporal.
Em uma homenagem ao trabalho de Suassuna, a cia Barca dos Corações Partidos traz aos palcos um espetáculo que mostra a magia por trás do universo do autor, não sendo a representação de uma obra específica, mas fazendo alusão a diversos personagens, em uma mistura interessante. A cia formada por rapazes multi-instrumentistas super talentosos (nós já conferimos isso no espetáculo AUE) encenam em “Suassuna – O auto do reino do Sol” um musical de qualidade ímpar, especialmente por ser completamente autoral.
Na trama uma companhia circense desbrava o sertão nordestino, guiados pela solar e poderosa Sultana. Enquanto avançam com a excursão se deparam com a realidade dos retirantes, que em situação de extrema pobreza vagam pela superfície árida. Alí, em meio à tamanha falta de perspectiva, a trupe monta sua lona para colorir com arte dias tão sofridos. E são então surpreendidos pelo pedido de abrigo de um desconhecido casal em fuga. Vindos de famílias rivais, Lucas e Iracema decidem, em um momento trágico, lutar pelo amor que sentem. E, como é de se esperar, os capangas da família da jovem partem em sua busca (e da cabeça de seu amado).
O espetáculo é muito feliz em retratar os costumes do sertão de outrora (tão bem narrado por Suassuna): Não só os aspectos culturais ficam evidentes nos figurinos e na sonoridade, mas também fala-se sobre o céu sertanejo – que de tão lindo embala tantas canções da nossa cultura popular – sobre a luta diária na seca, e também sobre a violência por essas bandas. É interessante perceber a forma como a honra familiar era capaz de dizimar a juventude: na base do facão jovens era mortos em um ciclo trágico. Bem como nas obras do autor, por trás de toda cor e alegria, existe uma realidade dura. E no desenvolver da narrativa este equilíbrio foi sendo estabelecido em cena.
Um ponto alto do espetáculo (como é uma característica da cia) é a parte musical. O trabalho apresentado é completamente autoral, com músicas desenvolvidas por um grupo de musicistas nordestinos e cariocas em longos processos de pesquisa em busca de uma maneira particular de desenvolver essa musicalidade tão cultural e regional. Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho assinam as músicas junto aos designers de som Gabriel D’angelo, André Garrido e Bruno Pinho. Este grupo consegue tornar sonoro sensações, sentimentos e histórias. Brincando com ritmos como caboclinho, toré, coco, ciranda, aboio… o musical consegue levar o público a uma viagem no tempo e no espaço, e isso se dá muito em função do bom trabalho desempenhado por estes rapazes.
O visagismo realizado por Uirandê de Holanda e Angélica Ribeiro completa o trabalho de transportar a plateia para os contos de Suassuna. Um trabalho baseado no cordel, trazendo símbolos que se associam a personalidade dos personagens (realçando-as). A indumentária de Kika Lopes e Heloísa Stockler tem papel fundamental na criação da atmosfera que todo número propõe. E o conjunto de tudo isso com a dinâmica cênica dispensa a necessidade de um cenário complexo – que é o que de fato acontece: Um cenário dinâmico e ao mesmo tempo simples, associado a uma iluminação precisa, não tornam o espaço cênico poluído.
O uso de técnicas circenses em cena agregara um grande valor ao espetáculo. Não só pelas pinceladas acrobáticas, mas (e principalmente) pela opção de trazer a palhaçaria à cena. E aqui vai também o destaque ao trabalho dos palhaços Eduardo Rios (na pele – dentre outros personagens – do aéreo Escaramuça) e Renato Luciano (como Cabantõe – também entre outros). A leveza da trágica história se dá em boa parte associada ao trabalho dessa divertida dupla. Por outro lado, os tons mais densos são dados pela atriz convidada Rebeca Jamir (que vive a apaixonada Iracema), e os rivais Major Antônio de Moraes (vivido por Ricca Barros) e D. Eufrásia (interpretada por Adrén Alves, que também encarna – brilhantemente – Sultana). O elenco afinado funciona bem tanto como conjunto quanto individualmente.
O espetáculo concorre com record de indicações ao prêmio Cesgranrio, incluindo melhor espetáculo, melhor texto (de Braulio Tavares) e melhor direção (Luiz Carlos Vasconcelos ). Ficam em cartaz (em dobradinha, clique aqui para entender melhor) no Teatro Riachuelo, no Rio, até o dia 20 de agosto. Depois tocam para Sampa.
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