“Eu não consigo pensar em nada mais necessário. Especialmente em tempos como esses. Especialmente agora.”
Nascido em Bloemfontein, hoje território sul-africano, John Ronald Reuel Tolkien – ou J. R. R. Tolkien – construiu, por meio das palavras, um riquíssimo universo imagético. Antes restrito à imaginação, a migração para o cinema conferiu forma àquele mundo. Esse processo, contudo, aconteceu à revelia do escritor. A primeira versão cinematográfica de “O Senhor dos Anéis” (The Lord of The Rings, 1954) estreou em 1978, cinco anos após a morte de Tolkien. Três décadas se passaram antes da consolidação de uma bem-sucedida franquia. Entre 2001 e 2003, a trilogia dirigida por Peter Jackson abocanhou dezessete Oscars, algo inédito para obras do gênero.
Se o autor já lograra prestígio no meio literário, a surpreendente resposta de premiações e bilheteria ampliou ainda mais o seu público. Nesse sentido, o cineasta fino-cipriota Dome Karukoski (“Tom of Finland”) acena também para esse espectador ao trazer para a grande tela a vida do pai de hobbits e tantas outras criaturas.
Já nos créditos iniciais de “Tolkien” (2019), imagens de uma luta medieval revezam-se com o nome da equipe responsável pelo longa-metragem. Descobre-se, depois, tratar-se da Primeira Guerra Mundial – mais especificamente da Batalha de Somme, onde o protagonista lutou. A incongruência entre os conhecidos fatos históricos e as aparições de dragões (foto) e outros seres míticos encontra uma simples explicação. Lidar com a monstruosidade do cotidiano demanda certa magia, algo de fantasioso.
De semelhante ludismo precisou o jovem John Ronald (Harry Gilby) para superar a morte da mãe (Laura Donnelly). Foi ela, afinal, quem o introduziu às virtudes da ficção. À noite, quando John e o irmão (Guillermo Bedward) deitavam-se para dormir, uma espécie de lanterna giratória acompanhava os contos de ninar. Ao apresentar tal técnica, uma espécie de pré-cinema, Karukoski chama a atenção para a proximidade entre o escritor e a Sétima Arte – mesmo que Tolkien nunca tenha trabalhado diretamente com ela.
Por um lado, portanto, há uma sincera homenagem aos poderes da imaginação. Nessa lógica, John Ronald dribla as dificuldades da infância escapando com os amigos para o mitológico reino de Helheimr. Por outro, porém, a preocupação em cobrir um vasto período da vida do autor implica em abruptas elipses temporais. Em um piscar de olhos – ou em um corte do montador Harri Ylönen (“Tom of Finland”) -, Tolkien não é mais o pequeno Harry Gilby, mas Nicholas Hoult (“Mad Max: Estrada da Fúria”), uma década mais velho. É quando o filme parece perder o rumo.
Tão entusiasmado por seu objeto quanto perdido em seu recorte, “Tolkien” percorre um caminho comum às cinebiografias apenas para repetir os mesmos erros. Quando, de outro modo, desvia-se do trajeto para aproximar-se da fantasia, oferece algo além de meras trivialidades. Nos derradeiros momentos, retoma-se, assim, a lanterna giratória. Poderia ser uma nova discussão – embora atrasada – sobre a faculdade da imaginação. Errado. Logo sobem os créditos, e já é tarde. Diferentemente de Jackson, Karukoski desperdiçou a oportunidade de fazer algo de original, à altura de quem os inspirou.
* O filme estreia dia 23, quinta-feira.
Fotos e Vídeo: Divulgação/20th Century Fox
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