Descobrir o corpo e a própria sensualidade é um passo que pode ser um marco na vida de qualquer um. Ao falar em mulheres isso se torna ainda mais tabu (considerando os parâmetros tão atrasados que ainda regem nossas relações sociais). Mas como é aqui e agora que devemos entender o quanto podemos ser mais do que isso, essa matéria vai falar (pela voz de uma musa, diga-se de passagem) de uma arte que pode (e vai) te surpreender, empoderar e mostrar que é lindo se viver no corpo que se tem: O burlesco!
Essa arte performática envolve teatro e dança em números que trabalham com a sátira e a paródia. As apresentações burlescas trazem de forma divertida toda sensualidade e poder feminino em números capazes de envolver a platéia de muitas formas. Não! Não se trata de show de strippers! Mas sim! Em muitos momentos envolve a prática do strip-tease dentro de uma proposta mais abrangente. E neste ponto, aflora nas artistas um poder que deveria ser degustado por todas. Para entender um pouco mais sobre essa arte tão rica, a Woo! bateu um papo com uma artista burlesca (DIVA): Chayenne F.
A Marajoara de 25 anos mora no Rio de Janeiro, onde além de ser pesquisadora geógrafa (sua outra paixão), começou a ter contato com a dança burlesca. Frequentou as aulas do grupo “Lindy na Lapa/Rio Hoppers”, começando em experimentações de danças vintage como o Solo Blues e o Authentic Jazz, o próprio Lindy Hop, o Charleston e o Balboa. E de lá pra cá cada vez mais busca beber de fontes que ampliem seus horizontes não somente como burlesca, mas como mulher dos nossos tempos. E nesse processo teve a oportunidade de desfrutar do trabalho de Wellington Lopes, Delirious Fenix (Isabel Chavarri) e Fannie Sosa, além de participar das atividades do coletivo Mulheres Negras Afrofunk Rio. Profissionalmente já atuou em palcos quentíssimos no cenário carioca em espetáculos como Cabaré Diferentão e o Rival Ribolado. Essa artista eclética trafega em muitas referências, passeando pelas subculturas rocker, mod, beatnik, riot… e também por manifestações culturais da região norte, como tecnobrega, carimbo, círio… Ou seja: Uma mulher que representa muitas mulheres (dentro e fora de cena).
A cultura burlesca, trazida aqui nesse papo gostoso com a Chay, está além do que se vê em cena: Ela responde pela forma como esse grupo se posiciona dentro de uma sociedade que reprime mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Impondo limites e censuras… Mas gente como a Chay estão na vida pra quê? Pra mostrar que barreiras existem pra gente passar como trator por cima.
Lorena Freitas – como essa vivência passou a mudar a sua relação c seu corpo e sua imagem? E você acha que essa arte tem esse poder de empoderar as pessoas? Como?
Chayenne Furtado – Eu nunca tive problemas em aceitar meu corpo como ele é. Claro que tenho minhas nóias, aquela implicância com o suvaco, pensamentos sombrios sobre como minhas coxas poderiam ser mais finas. Ser gorda nunca me fez triste, exceto quando me vejo sendo trocada por meninas padrãozinho, mas isso não é sobre auto-estima e sim sobre preterimento, sobre os padrões hegemônicos de beleza que tentam nos impor e afetam nossos afetos. Mas como declara Tati Quebra-Barraco, minha musa inspiradora, sou “grandona pra c*%#$, melhor só degustar”.
Acho que a mudança mais palpável pra mim tem sido usar os cabelos crespos como são naturalmente. Eu alisava o cabelo há bastante tempo porque sou apaixonada por penteados retrô e sentia que com ele alisado eu tinha mais possibilidades de manuseá-lo, mas entrou uma menina no meu trabalho em processo de transição capilar e foi tão bonito ver isso de perto que quando eu dei por mim, já estava com preguiça de refazer minha chapinha e queria ser bonita que nem ela. Mantenho-me feliz com meus penteados e colorações constantes e sigo me sentindo livre pra fazer o que bem entender com meu corpo quando quiser.
LF – Você acredita que o burlesco pode estimular as manas na luta contra o machismo (que tá aí, né?!)? Como você acha que essa arte pode fazer isso?
CF – O Burlesco é uma arte muito empoderadora, mas não apenas no que tange a celebração da diversidade dos corpos. O Burlesco é grandioso quando ele te acorda para a realidade de que você é uma pessoa maravilhosa e de que todo o universo se alegra com a sua alegria, portanto, celebremos! É lúdico, sincero, visceral, intenso, corajoso, transgressor, poderoso.
Penso que cada um tem histórias próprias pra contar pro mundo e o Burlesco pra mim, é como um palanque livre para que eu mostre como eu vejo as coisas daqui das janelas da minha alma. Eu como uma canceriana com lua em Sagitário, sou movida por amores e viagens e minha inspiração para a criação das performances vem de situações que presencio a partir dessas duas grandes forças motrizes. Meu Burlesco conta as minhas histórias, não é uma personagem alheia à mim, é uma persona que vem se construindo comigo. Para uma mulher desafiadora que se sentia reduzida a um casamento pretensioso, uma pin up vaqueira da década de 50 e uma música da maior guitarrista de rockabilly que já existiu (não, o Elvis não foi rei de nada). Uma aeromoça que visitou o Ver-O-Peso e voltou com um mágico banho de cheiro na mala que a liberta de um relacionamento abusivo e a transforma numa orgulhosa icamiaba (guerreiras matriarcais que existiram no Norte) ao som de um tecnobrega. Um vestido de vinil preto e um véu cobrindo o rosto para celebrar a eterna viuvez ao som de uma faixa de sua banda brasileira de psychobilly preferida, que fala sobre marcar um date com o diabo. Quando estou performando meus números, transmuto as emoções que me trouxeram até aqui em glamour e bom humor, isso me ajuda a sarar minhas feridas e a rir das minhas desgraças passadas. A arte cura. E é tão confortante pensar que todo esse doloroso processo, condensado em 4 minutos, é capaz de tocar aqueles que se colocam ao meu redor e até mesmo, inspirar ou encorajar outras pessoas que se identifiquem com meu universo…
LF- Você vem desenvolvendo trabalhos super legais com performances divertidas e extremamente sensuais. Conta um pouco sobre seu trabalho, suas experiências com divas maravilhosas como Delírious e Rogéria, seu trabalho no Rival…. Conta tudo!
CF – Minha experiência com o Rival Rebolado é muito enriquecedora. É como uma escola, só que melhor, é a escola dos meus sonhos. Ter a possibilidade de compartilhar processos criativos com trabalhadores da arte tão talentosos como eles é uma honra. Eu nunca estudei Teatro oficialmente por nunca sequer ter considerado praticá-lo, foi algo que se fez na minha vida de maneira inesperada e que honradamente, aceito.
Além disso, celebrar nossas lindas vedetes (das quais conhecemos tão pouco a história), através do Burlesco atravessado pelo Teatro de Revista, junto a mulheres que admiro demais e considero minhas irmãs, como a Delirious Fenix e a Iara Niixe (grandes companheiras que me dão suporte e estão juntas a mim ao longo do meu desenvolvimento no Burlesco a partir do quase zero) é a cereja do bolo. Além da Karina Karão, essa drag incrível e notória pra história do transformismo do Rio de Janeiro, que entrou na última temporada e com quem sempre aprendo.
Por ser sobrinha-neta de uma travesti, meu imaginário sempre foi povoado por seres de luz e purpurina, tudo o que foge da heteronorma faz com que eu me sinta em casa.
Penso que não por acaso, o cosmos cruzou meu caminho com o de Delirious Fenix em pleno “Buraco da Lacraia Dance Show”, este incrível culto ao desbunde promovido semanalmente por Letícia Guimarães, Éber Inácio, Luis Lobianco e Sidney Oliveira (nos dias de hoje formatado em “Buraco da Lacraia Opera House”, toda sexta, imperdível). Ali eu fui arrebatada. Essa trupe que com generosidade e companheirismo imensos, me ensinam tanto e com tanta doçura, promovem seus trabalhos com profissionalismo e qualidade ímpares e me servem de inspiração em tempo real. Todo segundo ao lado deles é aprendizado e diversão.
Participar de um espetáculo que celebra a cultura de transformistas pioneiras e poder abraçar deusas como Rogéria, Jane de Castro, Lorna Washington, Camille K, são momentos que vivi e sobre os quais sempre digo que “se eu não estivesse no elenco, seria a obcecada que toda noite está aos prantos na primeira fila assistindo aos shows”. Tanto que participei da campanha de financiamento coletivo do filme da Leandra Leal, o Divinas Divas, antes de sequer sonhar com tudo isso acontecendo na minha vida. Além de fã da cultura drag/transformista/queer em geral, quando adolescente eu assisti a Nome Próprio, filme protagonizado pela Leandra e que teve seu roteiro construído a partir de textos da Clara Averbuck, que me tocou de uma forma tão íntima que se tornara meu companheiro certo dos momentos de crise pessoal, aquele filme que você assiste comendo brigadeiro com a melhor amiga quando estão na fossa. Trabalhar hoje com a Leandra faz com que eu me reconheça enfim, uma mulher, e a reconheça como uma companheira, sempre me encorajando.
Pode ser piegas mas o sentimento que resume minha participação no Rival Rebolado é o de gratidão.
LF – Não é Piegas, Chay! <3
É interessante como a arte tem esse poder libertador e engrandecedor. Tudo o que ela nos traz (em autoconhecimento, amizades, parcerias, experiências…) é para melhorar a beleza que já temos. Então nessa matéria deixo o convite: Conheça o Burlesco! E se for um passo muito largo de começo: Conheça e desfrute da sua beleza, sem tabus, nóias ou padrões! Se jogue! Seja!
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