O que me fez querer ler “Histórias de Duas Cidades”, de John Freeman, foi a imediata referência que fiz com o livro “A Tale of Two Cities”, de Charles Dickens. Apesar das duas obras não terem nada a ver em conteúdo, foi o nome de uma que me levou até a outra. Em seu livro, Freeman utilizou a sua própria experiência na cidade de Nova York como ponto de partida para textos de outros autores que traduzem a dualidade de vivência nessa grande metrópole. A obra em si é uma compilação de vários ensaios sobre diferentes experiências no lugar, os textos que mais gostei foram os que se afastaram da questão o pobre e o rico morando lado a lado. Esse problema das duas cidades numa só, da casa do rico e da do pobre, eu vivo diariamente no Rio de Janeiro. Portanto, dei preferência aos textos que me elucidaram outras questões, vou falar aqui sobre meus três favoritos, além do prefácio feito pelo mentor do livro.
Prefácio por John Freeman
Freeman viveu uma situação que para mim é inaceitável: ele estava bem, em seu próprio apartamento e sustentado também pela gorda herança de sua avó; enquanto isso seu irmão vagava pelas ruas, sendo expulso de abrigos para sem teto e sem acesso ao dinheiro que também era dele por direito. Apesar de explicar a situação ao longo do seu texto, para mim, foi chocante ele relatar que tomava café da manhã na sua janela enquanto via seu irmão passar embaixo, sujo e faminto, rumo a estação de metrô mais distante para distribuir jornais. Isso que me pareceu meio inaceitável foi o ponto de partida de seu trabalho.
No prefácio o autor tenta justificar o motivo pelo qual deixava seu irmão viver tão largado, sendo que ele tinha condições de ajudá-lo. Apesar de entender que quando uma pessoa não quer ser salva não importa muito que você esteja disposto a se sacrificar por ela, já que nada vai adiantar, fico com uma dúvida cruel sobre o que eu faria se fosse meu irmão no lado oposto. Será que eu o observaria da minha confortável janela aceitando o fato de que aquela é a vida dele? Não sei.
Mostrar para o mundo essa disparidade também é uma forma de lutar contra ela, apontar as injustiças e falar sobre a desigualdade ajuda a mobilizar pessoas que estejam dispostas a fazer do mundo um lugar melhor. Escrever também é lutar, é militância. E vou deixar claro que essa introdução já me deixou demasiadamente desconfortável e não posso negar que gosto quando um texto faz isso.
“Enquanto os políticos discutem acaloradamente o montante e o modelo dos impostos, o salário mínimo, os custos de moradia e a melhoria das condições sociais, os escritores também podem entrar na briga, usando sua imaginação e experiência de modo a oferecer uma visão mais ampla das coisas que fortaleça a luta fundamental para que haja equanimidade em Nova York.”
Rumando para o Norte, por Garnette Cadogan
Esse texto eu li com todo o entusiasmo do mundo, porque seu personagem é um andarilho e isso me remeteu ao Jack Kerouack. O autor não faz essa referência no texto, mas a ideia de Cadogan de explorar a cidade a pé e se conectar com pessoas, se aproxima em parte dos ideais da geração beat, e qualquer texto que fale ou remeta a essa contracultura me conquista facilmente.
Além de referências implícitas, o texto é admirável em seu conteúdo autêntico. Digo isso principalmente porque após falar dos já caricatos moradores do Upper East Side, bem representados pelos personagens de Gossip Girl, o autor fala de uma desigualdade diferente. Essa não é monetária, mas sim de relações.
Para o autor a interação entre as pessoas é fundamental, assim como andar pela cidade a pé e ir desbravando vagarosamente cada canto do lugar. Dessa forma, mesmo quando ele sabia exatamente para onde ir ainda assim parava para perguntar informações, com isso ele engatava numa conversa com as pessoas e ia fazendo conexões por onde passava. Mas após observar os diferentes nichos locais, ele constatou que a interação entre pessoas não acontece nem nos bairros muito pobres nem nos muito ricos. É nesse momento que o texto sai do âmbito clichê, da desigualdade mora lado a lado, e aborda a questão da conexão humana:
“A desigualdade se manifesta tanto como desigualdade de recursos quanto, na direção oposta,desigualdade de interações. Mas, na verdade, todos ficam menores quando não existe interação, quando faltam experiência compartilhadas. Os muito ricos e os muito pobres — a desigualdade os torna iguais.”
Ida e Volta, por Akhil Sharma
Esse segundo ensaio que escolhi para falar é de um indiano que se mudou para Nova York na infância. Em seu país de origem sua família era considerada classe média, mas ali na américa eram pobres, apesar dele nunca ter se categorizado dessa maneira. O que mais me chamou a atenção nesse texto foi a maneira do personagem de lidar com dinheiro. Por ter sido pobre durante a vida toda, ao conseguir uma vida adulta abastada ele simplesmente não soube o que fazer com a grana que recebeu.
Engraçado ler sobre como ele estava feliz e disposto a gastar o dinheiro dele com as outras pessoas, mas nunca com ele. Pagou os empréstimos que a namorada tinha feito para poder cursar a faculdade e comprava presentes para a família, mas na hora até de gastar dinheiro com um remédio para sua saúde, ele preferia não fazer isso, não importava que naquele momento ele tivesse 300 mil dólares na conta. Sendo assim, ele abriu mão da vida que levava para se tornar escritor e deixou de receber os gordos contracheques. A dualidade nesse texto não é somente pobreza contra riqueza, mas sim de consciência. O autor não conseguiu, mesmo depois de ter lutado, se adaptar com uma vida luxuosa. Mas a batalha de consciência vai um pouco mais além, ao abrir mão da vida como gerente de investimentos para se tornar escritor, ele passou a sentir vergonha do novo status. Mesmo não sabendo o que fazer com o dinheiro, a falta dele lhe causava embaraço.
“Acreditava que outras pessoas podem ser melhores que eu porque tinham mais dinheiro — que eram mais inteligentes, mais interessantes, mais merecedoras de serem ouvidas e até mais virtuosas que eu porque tinham mais dinheiro —, porém nunca me vi como pobre.”
Walt Whitman em Further Lane, por Mark Doty
A minha escolha para falar desse texto é óbvia: Walt Whitman. O autor utiliza poemas e ideias de Whitman para falar sobre a desigualdade. Segundo Doty, o poeta acreditava que não deveríamos dar tanto valor assim para as riquezas e sim amar o sol, a terra e os animais. Parece um outro ponto clichê, não é mesmo?
No entanto, o famoso poeta norte americano não via na pobreza uma simples forma de conseguir personagens mais valiosos. Para ele qualquer pessoa teria seu valor numa história, mas os pobres e os socialmente rejeitados eram muitas vezes subestimados e tinham o seu valor ignorado, por isso Whitman olhava para eles com tanta dedicação.
Através de passagens de poemas e textos de Whitman que Mark Doty vai falar sobre o que ele acha da desigualdade numa mesma cidade. Apesar de morar num lugar conceitualmente rico, mesmo que sua casa não seja uma mansão, Doty fala sobre os absurdos que se paga atualmente para se ter uma moradia. Ele conversará com o leitor e com o poeta através de trechos de poemas e finaliza seu ensaio imaginando um encontro com seu ídolo.
“Se Walt Whitman pudesse me visitar em East Hampton agora, poderíamos conversar sobre isso, sobre as profundas injustiças que tornam tão difícil essa interiorização — talvez tanto para os ricos quanto para os pobres — e sobre o assombroso preço pago por Further Lane, que, segundo creio, ele acharia ao mesmo tempo perturbador e hilariante.”
Por Mariana Baptista
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Adoro obras contestadoras, que nos fazem refletir sobre aspectos sociais. Irei procurar esse livro.
Várias questões muito interessantes, mas, a que mais me chamou atenção foi a do primeiro caso. Muito se fala sobre a desigualdade social, mas, pensando nessa conexão humana é novidade para mim! Muito bom!
Fiquei especialmente curiosa a respeito do ensaio de Garnette Cadogan, mas o livro como um todo parece ser bem interessante.
Cada história dessa, juntas ao prefácio, são ótimos assuntos para reflexão. Gosto de obras assim. É incrível como a desigualdade (em seus mais variados sentidos) é unanimidade no mundo inteiro. Seja em São Paulo, no Rio ou em Nova Iorque.