Um talento paulista em sua acepção filosófica – prata da casa.
“Um corpo divisível” é um conjunto de contos que representa a metáfora do tema problematizado por Paulo Abe em cada uma das narrativas, contadas ao contrário, no revés de um nascimento em que se descobre gêmeo de outro. Do locus inicial, a morte, até a chegada ao ponto de reencontro consigo e com o seu outro: o útero.
Em “Ninguém”, o autor tece uma projeção, que, como tal, forja-se num mundo irrealis, mas cujos elementos e fatos são tão íntimos do narrador que lhe soam já conhecidos, justamente porque se revela como premonição, a premonição de uma vida esgarçada pelo duplo. Autor e narrador confundem-se ao longo das histórias bem articuladas. Ao mesmo tempo que clama sua una cellula e seus olhos em in altera vita, erige um interlocutor plural, em nenhum momento individualizado em sua condução das experiências de leitura que promove. O narrador identifica-se homonimamente ao autor situando de pronto sua problemática existencial: sua condição de gêmeo, nascido em família nipônica e num ambiente de competição provavelmente fraternal: “inseparáveis”, “inimigos e seu contrário”. Impossível interromper a leitura das teias que nos vão prendem. A essas mesmas teias prende-se igualmente Paulo até os 20 anos, mas o parâmetro similar é inescapável: “uma vez iguais, tínhamos de ser diferentes”. E num jogo de ambiguidades e felizes extensões metafóricas, o narrador, talvez autor, talvez Paulo, revela seus dilemas entranhados desde a morte até o útero, único percurso possível e plausível para compreender a dissonância entre idênticos e desiguais. Essa dissonância vai se reverberando em cenas simples recolhidas de um plano memorável para nos fornecer mais e mais instantes de pura entrega ao que de melhor as produções literárias podem nos trazer: fruição, puro prazer.
Nos demais contos do conjunto, os quais podem ser lidos em ordem totalmente aleatória sem perder a qualidade da teia tecida que nos acalora o espírito e nos prende a atenção, a sensação de, às vezes, entrar nessa rede de pensamentos e de sensações confusas alça-nos ao ápice. Todos os momentos de pequenas mágoas revividos pela memória de convivência entre sublimes alegrias e ínfimas injustiças vão se (des)fazendo nas várias cenas de “O Relâmpago”, segunda instância em que imagens sinestésicas são oferecidas como um estado emaranhado, um momento sobreposto de vida e de morte. Ao plural leitor resta um misto de sensações, inomináveis, insofismáveis, que começam a se materializar em “Binômio” com uma lufada de questões filosóficas, o ego ingressando na mais recôndita porção do alter como se o soubesse atemporalmente: afinal, teve “de responder sempre a dois nomes publicamente” e estranhamente no espaço mais íntimo raramente era ele próprio, não porque não o quisesse, mas porque era (in)divivísel desde o permastore até o meio-luto e, depois, à reconstituição unicelular. Só quando adentramos o “Labirinto” voltamos a nos colocar em nosso corpo novamente. Até então, só Paulo e Marcos Paulo, dois desfeitos, um renascido do fim ao começo. E com essa trajetória Paulo Abe se discerne de si mesmo, constitui-se como um grande talento no campo literário, um autor que conduz seu leitor a sensações que jamais poderia vivenciar se não pela teia de um espaço-tempo motivado em dimensões (ab)solutas e (i)mutáveis da realidade de um que desde o útero conviveu com um outro um, numa relação de conhecer-se continuamente.
Esse talento foi, em 2018, vencedor do Prêmio Nascente da USP e sagra-se como uma promessa literária brasileira.
O livro “Um corpo divisível” está em pré-venda na Editora Penalux.
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