O Sesc Pinheiros recebe o monólogo “Quarto 19”, com direção de Leonardo Moreira. O espetáculo concebido e encenado por Amanda Lyra, é baseado no conto “To Room Nineteen”, da escritora britânica Doris Lessing, Nobel de Literatura em 2007. Publicado originalmente em 1978, o conto apresenta Susan Rawlings, uma mulher em um caminho de auto-percepção e apreensão de seu “eu” autêntico. Os efeitos provocados pelo casamento burguês com Matthew, a fragmentação da identidade feminina daí resultante, a extenuante procura pelo significado da vida e a tensão entre o “eu social” e o “eu marginal” são tópicos evidenciados no dilema da personagem.
O enredo trata da independência feminina no mundo contemporâneo e sua identificação com os papéis sociais de mãe, esposa e organizadora do lar, representados por uma personagem que, mesmo tendo conquistado o que poderia ser o ideal maternal, não encontra satisfação pessoal, buscando refúgio no silêncio, no “quarto nº 19”.
Batemos um papo com a atriz Amanda Lyra sobre o universo do espetáculo e suas próprias percepções em relação a pressão social da mulher na nossa sociedade. Confira!
Como o conto “To Room Nineteen” chegou às suas mãos? Você já conhecia o trabalho da escritora britânica Doris Lessing?
Não, não conhecia. Quem me apresentou esse conto foi o meu marido, que é escritor. Na época ele estava fazendo um mestrado em criação literária em Nova York e um dos contos estudados foi o “To Room Nineteen”. E ele achou que eu ia me interessar. Eu fiquei muito impactada pelo jeito que a Doris escreve e pela possibilidade cênica dessa história, que é muito forte.
Da escolha do texto à tradução e montagem, como foi o processo de criação do espetáculo?
A primeira vez que eu li esse texto foi em 2009 e desde então eu senti uma grande possibilidade cênica nele e quis levá-lo para mais pessoas. Em 2010 comecei a formatar o projeto para montar a peça, convidei o Leonardo Moreira pra dirigir e ele topou. Chegamos a mandar o projeto pra vários editais mas não entramos em nenhum e o projeto ficou engavetado por alguns anos porque eu e o Leonardo fomos fazer outros trabalhos. Há cerca de 1 ano, eu já tinha tido filho e senti que era o momento de voltar com esse projeto e finalmente levantar a peça de alguma maneira. A peça estava mais relevante pra mim e era um momento importante pro projeto acontecer com essa nova onda do feminismo também. Aí eu traduzi o texto porque a tradução que existia era muito antiga e difícil de falar numa peça de teatro. Eu deixei tudo mais coloquial e adaptei principalmente as partes que localizam a história que no conto se passa em Londres e os nomes dos personagens que são gringos, mudando pra uma realidade mais brasileira. E começamos a levantar a peça em outubro do ano passado.
Doris publicou sua primeira obra nos anos 50. Na sua opinião, o que mudou de lá pra cá em relação ao papel esperado pela mulher na sociedade? A pressão ainda é a mesma?
Eu acho que de lá pra cá o que mais mudou é que hoje em dia a grande maioria das mulheres trabalha fora. Acho que nos anos 50 isso ainda era muito raro e quando acontecia eram profissões ainda muito restritas: professora, enfermeira, etc. Quase nenhuma possibilidade além de ser dona de casa. Acho que de lá pra cá a gente conquistou bastante coisa nesse sentido. Não sei se a pressão é a mesma mas eu acho que o que ainda não mudou é que na maioria dos casos a mulher precisa trabalhar fora para colaborar no orçamento doméstico e dar conta da casa e dos filhos também. São poucos os casos onde o homem tem uma participação efetiva no cuidado da casa e na criação do filhos. Então a mulher tem uma jornada dupla. A gente quer existir fora do ambiente doméstico mas tem que dar conta de tudo isso.
Doris Lessing, tinha uma mente à frente de seu tempo e fez escolhas difíceis para seguir a sua carreira. Ela passou por julgamentos que um homem não teria que passar. Em “Quarto 19” a sua personagem diz precisar de um lugar somente dela onde ela se sente anônima, livre de todas as expectativas sociais reservadas a ela: casar, ter e criar os filhos, etc. Como você lida com essas expectativas e como elas dialogam com a sua carreira de atriz?
Eu acho que todo mundo quer ter um “quarto 19”, mesmo os homens querem ter um espaço onde se possa existir independente dos papéis sociais que nos são reservados. No caso do texto, ele fala particularmente da mulher, mas eu acho que isso pode ser ampliado para todos. Eu acho que a Doris teve que ser radical com algumas coisas. Ela abandonou dois filhos na África do Sul para morar em Londres e seguir a carreira de escritora. Acho que isso era mais difícil naquela época, mas hoje em dia isso acontece muito. Muitos homens abandonam as famílias para ter sucesso na profissão, pra se sentirem livres ou morar noutro lugar ou até mesmo pra construir uma nova família e são bem menos julgados por isso do que as mulheres. Justamente porque se espera que esse seja um papel da mulher: casar e criar os filhos. Quando a mulher rompe com isso ela é muito mais julgada porque é o papel social que está reservado pra ela há muitos e muitos anos. E se você se opõe a isso, você é vista como uma bruxa, uma pessoa ruim. Não existe esse mesmo julgamento em relação aos homens. O homem tem que ter sucesso, ser livre, fazer mais sexo que as mulheres, precisa ganhar mais dinheiro… O nosso próprio presidente golpista Michel Temer falou isso no discurso dele no Dia das Mulheres: a mulher tem que criar os filhos, ir ao supermercado… Se um filho é bem criado, a mulher criou bem. Se um filho está mal criado, a culpa é da mulher. Fazendo um paralelo comigo, eu também tenho um filho, tenho uma casa, uma estrutura de família burguesa que é o tema mais forte no conto da Doris Lessing, que é essa arapuca, essa armadilha que é essa estrutura da família burguesa. Que é além desse universo feminino, pois o homem também está infeliz ali. A gente está reproduzindo esse padrão e a gente sabe que ele está fadado ao fracasso. Eu também tenho essas questões, também tenho que dar conta de trabalhar fora, ser atriz, criar meu filho. Preciso de uma babá, pois eu preciso trabalhar e meu marido também está trabalhando. Mas diferente de muita gente, o meu marido é bem participativo, a gente compartilha todas as questões domésticas com o mesmo peso entre mim e ele, o que eu acho que é maravilhoso e sei que é exceção. Mas mesmo assim eu lido com as mesmas culpas: se meu filho fica com a babá porque eu estou atrás do sucesso da minha carreira, eu não sou uma boa mãe. Se eu estou com ele na praça brincando, “nossa essa mulher não trabalha?” Então a gente vive essa dicotomia! A gente tem que dar conta de todos esses papéis sociais e tentar ser feliz no meio disso tudo.
Na sociedade em que vivemos, o que precisa ser diferente para que todos alcancemos a liberdade que esperamos na vida?
Eu não sei! Acho que estou fazendo essa peça até pra fazer essa pergunta mesmo. Mas eu acho que reconhecer as diferenças entre os outros e também as igualdades de direito e de deveres de cada um é um começo. É uma questão complexa.
Sua personagem não sente a liberdade que esperava e foge da família alugando um quarto de hotel. Ela não consegue manter um diálogo com seu parceiro e evita falar sobre suas frustrações com ele, acreditando que ele não a entenderia. Na sua opinião, qual a maior dificuldade para que casais como o casal retratado no “Quarto 19” dialoguem e se ajudem na divisão e desempenho de suas funções sociais?
Eu acho que por mais que a gente se considere mais libertários, mais livres dessas amarras sociais, é difícil! O casal do conto é um casal moderno, cosmopolita, ele é jornalista, ela é publicitária… E mesmo assim, eles se veem nessa cilada. E muito disso tem a ver com uma estrutura ancestral que está enraizada na gente e por mais que a gente saiba que ela não funciona, ou que a gente não se encaixe nela, é difícil se desvencilhar dela, pois está tudo organizado pra acontecer dessa maneira. E tem os nossos pais e avós e toda essa estrutura que está na publicidade, na televisão e a gente cresceu achando que esse é o modelo de felicidade. Existe uma idealização, você precisa casar de branco, ter filhos, o que se espera do marido, da mulher… E quando você se vê vazio dentro disso, é difícil. Acho que falta diálogo e modelos diferentes, como Simone de Beauvoir e Sartre que se estruturaram de maneira diferente dentro de uma relação amorosa. Tem outros casais como eles, mas a gente não vê isso na publicidade, por exemplo. E pra romper com isso é difícil. É preciso muito diálogo para que a casa seja responsabilidade dos dois, para que a vida fora da casa seja um direito dos dois, que a mulher tenha o mesmo espaço que o homem, que o homem tenha o mesmo dever que a mulher em relação aos filhos…
A sociedade avançou muito. Hoje já discutimos mais abertamente e com mais naturalidade diversos assuntos. Apesar da pressão ainda ser maior para a mulher, hoje em dia, os papeis sociais de mãe/pai, esposa/marido e organizadores do lar já estão mais equilibrados que nos anos cinquenta. Você acredita que vai demorar muito para que esses papéis estejam dissolvidos?
Acho que sim. Se a gente pensar na classe média, classe média alta, isso está mais discutido e os papéis estão mais equilibrados. Mas se partimos para as periferias, paras as cidades menores, isso ainda não acontece. A mulher trabalha fora o dia inteiro, chega em casa e ainda precisa preparar comida, limpar casa, lavar roupa… O marido chega, senta e pergunta o que tem pra comer. Não se espera que ele resolva nada das questões domésticas. Está menos equilibrado do que a gente gostaria. Acho que ainda falta bastante pra que isso de fato se dissolva.
Para informações sobre o espetáculo, acesse nossa agenda cultural:
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Por Thiago Pach
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