Ciência e religião caminham lado a lado em “Ad Astra – Rumo às Estrelas”. Ao longo do filme, não é incomum ver astronautas orando para santos padroeiros, destacando a importância de pensar em Deus como forma de resistir ao isolamento no espaço e às frustrações do trabalho científico ou, até mesmo, comparando seus estudos a uma obra divina. Assim, o diretor e co-roteirista James Gray parece dizer que, apesar de serem constantemente postas em oposição, ciência e religião são forças complementares e, em certos aspectos, bastante parecidas. Não é coincidência que, por muito tempo, os religiosos foram os maiores detentores de conhecimento ou que alguns dos grandes cientistas da História eram pessoas crentes. Afinal de contas, o ponto de partida do estudo científico não deixa de ser a crença na existência de algo cuja realidade é questionada (ou desconhecida) pelo status quo. Pensando assim, “as estrelas” do título podem ser compreendidas tanto de forma literal, como também metáfora ao éter.
Essa interpretação ajuda a entender a escolha de Gray e seu parceiro de escrita Ethan Gross em investir em uma narração à la Terrence Malick durante toda a peregrinação de Roy McBride (Brad Pitt) pelo Sistema Solar em busca de seu pai desaparecido. Assim como Malick intercala textos em off que se assemelham a diálogos entre personagens terrenos e um ser divino desconhecido com imagens que, em teoria, não combinam com o caráter filosófico-religioso dessas palavras (festivais de música, festas hollywoodianas, o Big Bang), Gray sobrepõe a narração de McBride ao retrato da colonização terráquea do espaço sideral. A banalização do “desconhecido” representada pela exploração capitalista na Lua – transformada em gigantesco shopping center e campo de batalha entre potências econômicas pela exploração de minérios – contrasta com as indagações do protagonista, calcadas nos mais antigos (e misteriosos) dilemas humanos.
Nem sempre essa estratégia funciona, eventualmente caindo na redundância, reiterando aquilo que a imagem já explicita, algo desnecessário se tratando de um realizador tão astuto visualmente como Gray. Entretanto, como um todo, a narração, mesmo que muito baseada em lugares-comuns, ajuda a compreender a visão de mundo de Roy e, consequentemente, as escolhas feitas pelo diretor de como abordar a interação do protagonista com aquilo que o cerca. Conhecido pela sua constante aprovação em avaliações psicológicas e pela capacidade de manter os batimentos cardíacos controlados até mesmo em situações de risco, a personagem de Pitt é quase uma pedra de gelo em forma de gente. Isso explica não só o seu sucesso profissional e o seu fracasso matrimonial, como também justifica a escolha de James Gray em manter “Ad Astra” como um filme distante. Isso é perceptível, principalmente, nas cenas de ação. Ao invés de carrega-las de tensão e momentos catárticos, o diretor investe numa sisudez coerente com o comportamento de Roy, lhes envolvendo numa aura de “outro dia no trabalho”, e não de “extraordinária aventura interestelar”. A emoção dá lugar a um racionalismo extremo, preocupado em seguir protocolos que garantam o controle da situação.
Contudo, à medida que a possibilidade de reencontrar o pai se torna mais concreta, os limites entre razão e religião ficam cada vez mais difusos para Roy, desconstruindo toda a forma como ele encara sua vida. Clifford McBride (Tommy Lee Jones) é apresentado pela SPACECOM (uma espécie de NASA ficcional) como um herói, responsável pelo desbravamento de cantos até então desconhecidos do Sistema Solar e tão dedicado à ciência que sumiu em meio a uma missão exploratória em Netuno. Para Roy, porém, seu pai não somente é um visionário como também é o norte que rege todas as suas escolhas. Quando o protagonista diz que está “sempre de saída” ou que a periculosidade de seu trabalho exige manter-se distante dos outros, ele está apenas usando as mesmas justificativas que seu pai usava para afundar-se no trabalho e abandonar a família. Entretanto, a partir do momento em que as semelhanças com o pai tornam-se especialmente perigosas, Roy percebe que toda a sua racionalidade e controle emocional são apenas um “teatro” montado para disfarçar a idolatria cega que alimenta por um homem que mal conhece de verdade – não muito distante de um fanático religioso.
A afirmação de Clifford de que “somos uma raça em extinção” carrega mais de uma interpretação possível. De maneira mais ampla, pode-se entende-la como uma referência ao fim da humanidade devido à sua ganância e às consequências que esta acarreta não só sobre a Terra, mas também sobre os territórios conquistados pelos terráqueos em outros planetas e satélites. A afirmação também pode aludir ao aumento da descrença na ciência e da falta de vontade dos próprios cientistas em levar a cabo suas pesquisas se estas acarretam na deterioração de sua saúde física e mental. Por fim, a “raça em extinção” pode ser também homens como Clifford e Roy, que fechados em seus objetivos, representam uma ameaça àqueles à sua volta, mesmo que, inicialmente, suas intenções sejam nobres.
São discussões como essa, cujas ramificações podem ser percebidas no cotidiano, desde o obscurantismo político até o debate sobre a separação entre indivíduo e artista, que fazem de “Ad Astra – Rumo às Estrelas” uma obra interessante, mesmo que não inteiramente bem-sucedida. Talvez como forma de garantir o orçamento de blockbuster necessário para contar sua história, o filme encontra-se num curioso meio-termo entre drama existencial e espetáculo hollywoodiano, o que o impede de alcançar plenamente seus objetivos tanto de um lado quanto de outro. Mesmo assim, é inegavelmente gratificante ver que projetos como esse ainda consigam ser aprovados em um cinema comercial cada vez mais homogeneizado e monopolizado; o que por si só, já merece atenção.
Imagens e vídeo: Divulgação/Fox Film do Brasil
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