Toda família sempre guarda seus segredos e questões. O sangue que une, a criação que gera afinidades, os sacrifícios dos patriarcas e toda superproteção, a predileção, os conflitos velados, os sonhos reprimidos… Todas as componentes que tornam essa relação tão significativa criam fortes laços ao passo que geram atritos insolúveis. Mas até que ponto o laço de sangue pode ser capaz de influenciar na vida de uma pessoa? No drama familiar “Agosto” se vê escancarado o retrato (total ou parcial) de muitas famílias. Nessa representação quase atemporal, em meio a gargalhadas vemos a decadência dessa instituição em ágeis duas horas de espetáculo.
A trama acontece em uma casa de uma família de classe média estadunidense e narra a história de um casal de idosos, Violet (Guida Vianna) e Berverly (Paulo Giardini) que contratam uma assistente do lar para auxiliá-los. Johnna (Julia Schaefer) é uma descendente indígena que representa ao longo de toda narrativa um único ponto neutro e coerente. O desaparecimento repentino de Berverly, une a família junto a Violet. Essa é a oportunidade que reúne, depois de muitos anos, as três filhas do casal: Ivy (Marianna Mac Niven), a filha mais próxima dos pais e também mais reprimida pela mãe; Karen (Claudia Ventura), a filha que sonhava em encontrar um par perfeito e vive em Miame com aquele que ela acredita ser o homem de sua vida; e Bárbara (Letícia Isnard), a filha mais forte que vive com seu marido e sua filha adolescente longe dos pais por, além de não suportar o deserto, ter sérios atritos com sua mãe.
Violet é uma mulher difícil que além de ser hipocondríaca não mede suas palavras e atitudes mediante a família. Aos poucos a matriarca vai expondo as mazelas da história desta, que aparentemente seria uma boa família do Meio-Oeste americano. Com um humor ácido, temas densos vão sendo apresentados, mostrando as feridas abertas no peito desta mulher e os seus desdobramentos familiares.
Ao longo do espetáculo (dentro de uma mesma família) surgem casos de temas como adultério, divórcio, negligência familiar, transtornos medicamentosos, abuso de menores e agressão. A forma como tudo se soma em uma grande bola de neve alterna momentos de sobriedade e histeria, humor escrachado e tensão. É o tipo de trabalho que fará o público se ver perplexo por rir de questões tão sérias. O alívio cômico não só age no sentido de tornar o texto (Tracy Letts traduzido por Guilherme Siman) mais ágil e digerível, como também é uma forma de escancarar questões veladas em muitas famílias, trazendo à tona risos pela graça e pela infeliz identificação.
A casa onde a reunião da família acontece não recebe iluminação do sol, e não tem ar-condicionado, por vontade de Violet. Fazendo do lugar uma representação insalubre de um pequeno inferno (familiar). A cenografia (Carlos Alberto Nunes) cria, com recursos simples, uma relação com a luz do sol e a baixa claridade dentro da casa representada, formando uma atmosfera deprimente. Durante todo espetáculo o desconforto pelo calor é possível de ser percebido. Somando essas qualidades incômodas do espaço com as relações incômodas encenadas a peça envolve a plateia em um ambiente inquietante.
O cenário vem a reforço, sendo composto basicamente por cadeiras de madeira escura empilhadas. A cenografia acerta ao utilizar essas cadeiras também para estabelecer relações sociais na disposição espacial (em algumas cenas). São elas que dão o ar de desordem, mas também trazem a ordem em cenas importantes.
A iluminação (Renato Machado) tem uma importância fundamental na narrativa, ratificando o ar deprimente trazido ao palco. Ao longo da montagem cenas recortadas pela luz orientam a atenção do público, sempre de forma bela e elegante. A relação com o sol também destaca esse aspecto da montagem, trazendo temperatura à cena.
A direção de André Paes Leme merece aplausos, ao trabalhar com um elenco de onze atores de peso em um conjunto harmônico e impactante. Uma opção inteligente e interessante adotada foi a apresentação simultânea de cenas no mesmo espaço cênico, remetendo, em algum nível, ao longa de Lars Von Trier DogVille, onde na realidade da história contada os personagens não podem se ver, mas na cena todos dividem o mesmo espaço. Uma forma poética de mostrar que na verdade os segredos velados são um fardo coletivo. No espetáculo essa opção utilizou um ritmo de falas que intercaladas criam um terceiro diálogo em algumas cenas. Belo e inteligente!
O trabalho dos atores está perto do irretocável. Com destaque para Guida Vianna e Letícia Isnard, que dão vida às personagens mais fortes da trama. Mas de forma geral o grupo é coeso, afinado e com talentos equiparados.
O espetáculo fica em cartaz em curta temporada. É uma ótima opção para ver em família, sozinho, em casal… O importante é não perder a chance de desfrutar de um trabalho desta qualidade.
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