O universo criado por Lewis Carroll é fantástico e sublime, desafiando os conceitos lógicos de realidade. Como na cabeça de uma criança que começa a conhecer o mundo, ainda longe das noções de possível e impossível, o contexto “encantado” doa a todos os públicos o mesmo olhar pueril e curioso de quem aceita como realidade tudo o que se apresente como tal.
Recriar essa magia, ao se apropriar da história de Alice, deixando a imaginação fluir, permite à qualquer direção (seja filme, teatro ou outros) uma gama de infinitas possibilidades. Os longas de Tim Burton, por exemplo, foram responsáveis por submergir os expectadores em um universo de cores e formas surreais, bem como bastante divertido, e como resultado tornou-se um sucesso de bilheteria.
No entanto, quando se fala em teatro a coisa muda um pouco de figura. Uma vez que o espaço cênico é fixo e experimentado por atores e plateia simultâneamente, trazer à luz um universo tão distante da realidade gera desafios grandiosos para as mentes mais criativas, uma vez que os efeitos visuais e especiais acabam passando (na maioria dos casos) longe da cena.
E é na genialidade em recriar essa fantasia no Teatro que a peça “Alice Através do Espelho”, dirigida por Paulo de Moraes, promete ser uma experiência única e muito cativante. Tudo que compõe a vivência é surpreendente e envolve a platéia que, por vezes, participa e interage com a cena. O ponto forte é, sem dúvidas, a forma única como a montagem se apropria do espaço. Luzes, cortinas, cenários e uma criatividade ímpar fazem desse espetáculo o palco perfeito para atuações sublimes.
E assim se dá o trabalho do elenco. Em um contexto que beira a histeria, os atores nos presenteiam com atuações divertidas, subversivas e (principalmente) consistentes. Durante a apresentação, a maior parte dos atores encarna mais de um personagem, mostrando completo domínio do trabalho desenvolvido. A bela Alice (interpretada por Lisa Favero) destoa do quórum com um atuação mais branda e comedida, permitindo pequenos intervalos nos quais se deixa levar pelo ritmo dos acontecimentos. Esse descompasso funciona perfeitamente, dando a medida do quanto Alice é (ou não) parte daquele país das maravilhas. O chapeleiro, brilhantemente atuado por Patrícia Selonk, merece o destaque: com uma proposta consciente, traz um personagem perturbador e inquietante, sem por isso, deixar de ser cativante. E, por último, mas não menos importante, Simone Mazzer deu a Rainha de Copas um ar louco e sacana realmente interessante.
A trilha sonora, também assinada pelo diretor, apresenta clássicos do rock n’roll internacional encaixado em momentos exatos. Trazendo a noção de rebeldia e loucura, no tom certo, ecoando junto ao conjunto barulhento do elenco. Os figurinos, em sua maioria, são desenvolvidos em uma paleta de cores cruas e sóbrias, em contraponto ao colorido de algumas indumentárias. Essa opção não só se contrapõe ao contexto geral do número, como deixa esses detalhes ainda mais vibrantes…. Ou seja: mais uma vez genial.
Diferindo da maior parte das montagens do clássico, esse espetáculo é integralmente direcionado ao público adulto. Não somente por falar “coisas que crianças não devem ouvir” (seja lá o que isso signifique), mas por trazer reflexões que propõem a esse público o processo digestivo. Um outro diferencial, dentro dessa linha, é que o espetáculo desenvolve de forma clara a possível relação entre Alice e o autor das obras (fato que é desconsiderado na maior parte das montagens para telas ou palcos), tratando algumas contradições abertamente. A título de contextualização, Carroll certa vez declarou gostar de crianças, meninas, além de fotografa-las em poses sensuais (com o consentimento das respectivas famílias). Contudo, de acordo com os pesquisadores Hughes Lebailly e Karoline Leach, neste período, havia a relação das imagens de meninas e o “culto da criança vitoriana”. Esse modismo justifica para alguns a relação de Carroll com meninas, limitando ao plano artístico. Sabe-se, no entanto, que o autor escrevia cartas as suas modelos, as quais tratava como “amiguinhas”, e que a família de Alice Pleasance Liddell rompeu relações com o autor (20 anos mais velho que a menina, nesta ocasião com 11 anos de idade). Como tudo, o que se referia a Alice foi arrancado do diário de Carroll e as cartas queimadas, o que se especula é que o mesmo tenha expressado interesse de se casar com a jovem, ou que o caso fosse, na verdade, com a mãe da moça. Não se sabe ao certo a que ponto chegou a relação entre fotógrafo e modelo, o que se sabe é que Lewis era solteiro e a Alice nunca acusou Carroll de abuso sexual.
A peça ficará em cartaz até o dia 20 de fevereiro, e vale a pena uma visita!
Nota da autora
Eu gostaria muitíssimo de contar para vocês os “pormenores” dessa peça incrível. E me perdoem a superficilidade em dados momentos. Mas o que vivi nesta noite é tão diferente do que estamos acostumados a assistir, que seria dar spoiler me aprofundar mais. Então, reforço que é um espetáculo que vale a pena! O mais…. é importante que vocês descubram.
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