Do surgimento do vídeo até os serviços de streaming, os limites formais entre Cinema e Televisão ficam cada vez menos definidos. Nos EUA, um efeito claro disso é a migração de profissionais do cinema americano para as emissoras de TV que vem acontecendo desde os anos 90 e agora é celebrada sem pudores. Nomes de peso como Steven Spielberg, Martin Scorsese, Ron Howard e David Lynch estão por trás de produções prestigiadas pela crítica e pelo público.
Fora de Hollywood, essa relação já existe há mais tempo, e trouxe verdadeiras pérolas. Além de inovarem a linguagem televisiva e inspirarem outros profissionais, os programas escolhidos provam que verdadeiros trabalhos autorais surgem em qualquer meio artístico. Confira a lista abaixo:
“Riget”, de Lars Von Trier
Antes de criar o Dogma 95 – e ganhar o título de persona non grata em Cannes -, o cineasta Lars Von Trier aterrorizou o público dinamarquês com “Riget” (“Reino”, em tradução livre). O hospital que dá nome ao programa era palco de uma série de eventos bizarros, como tráfico de órgãos nos corredores da instituição, o aborto de um feto monstruoso, pesquisas ilegais com seres humanos e a presença do fantasma de uma menina assassinada no prédio. “Riget” não só se destaca pela galeria de personagens e tramas grotescos, mas também por sua linguagem não-convencional, indo da reportagem ao cinema-verité.
Em 2004, o programa foi adaptado para a televisão americana como “Kingdom Hospital”, por ninguém menos que Stephen King. Ao contrário do original, porém, a adaptação recebeu críticas menos entusiasmadas.
“A TV Dante”, de Peter Greenaway
É difícil definir Peter Greenaway apenas como cineasta, já que toda a obra do inglês é um testamento do cinema como a junção de todas as artes- especialmente a pintura, a música e o teatro. Greenaway já era conhecido por filmes como “O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante” e “A Barriga do Arquiteto” quando desenvolveu “A TV Dante” em parceria com Tom Phillips, para o Channel Four, na Grã-Bretanha.
Tendo como base os primeiros cantos de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri – aqueles referentes ao Inferno -, Greenaway e Phillips criaram uma série de oito capítulos que funciona tanto como adaptação, atualização e comentário da obra original. Com uma linguagem mais próxima da vídeo-arte do que do Cinema ou TV tradicionais, o programa sobrepunha diferentes camadas de imagem e texto, acompanhados pelo comentários de especialistas sobre a obra de Dante.
A série ainda ganharia uma continuação (igualmente inventiva) baseada nos seis cantos seguintes, pelo chileno Raúl Ruiz. Logo depois de “A TV Dante”, Greenaway trabalhou para TV britânica com o especial “M Is for Man, Music, Mozart”, em homenagem ao 200 anos de morte do compositor.
“Berlim Alexanderplatz”, de Rainer Werner Fassbinder
Baseada no romance de mesmo nome de Alfred Doblin, a minissérie em 14 capítulos de Fassbinder é considerado por muitos como seu maior –em qualidade e duração- filme . Polêmica por seu realismo e crueza, o impacto da obra foi sentido tanto pela crítica quanto pelos próprios cineastas – Susan Santong escreveu sobre a série em uma edição da Revista Vanity Fair em 1983, Francis Ford Coppolla e Michael Mann a citam como uma grande influência, e Todd Haynes se apropriou de imagens do epílogo para seu filme “Velvet Goldmine”.
Restaurada em 2006 pelo Goethe – Institut, “Berlim Alezanderplatz” acompanha a busca por redenção do ex-detento Franz Biberkopf no submundo de Berlim, nos anos 20. Em meio a depressão econômica pós- Primeira Guerra Mundial, o enfant terrible do Novo Cinema Alemão cria um retrato cruel e comovente da Alemanha que mais tarde estaria nas mãos de Hitler.
“Decálogo”, de Krzysztof Kieslowski
Realizado para a televisão polonesa em 1988, “Decálogo” consiste em 10 capítulos – ou seriam filmes? – inspirados nos 10 mandamentos bíblicos. Amplamente premiado – foi vencedor do Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cinema de Veneza – , é considerado a obra prima do cineasta que ainda realizaria “A Dupla Vida de Verónique” e a Trilogia das Cores, formada pelos filmes “A Liberdade é Azul”, “A Fraternidade é Vermelha” e “A Igualdade é Branca”.
As histórias dos 10 episódios se passam no mesmo conjunto habitacional de Varsóvia, numa Polônia abandonada por Deus e pelo resto do mundo. Unindo todos os conflitos e questões dos personagens está a fragilidade humana diante de um mundo cujas leis morais e éticas não se encaixam por completo. O quinto e o sexto capítulo foram transformados em longas pelo próprio Kieslowski , dando origem a “Não Matarás” e “Não Amarás”, respectivamente.
“Six Fois Deux”, de Jean Luc-Godard e Anne-Marie Miéville
Das produções realizadas para a TV pelo cineasta franco-suíço, uma das mais interessantes foi “Six Fois Deux”, realizada em 1976 em parceria com a diretora (e sua esposa) Anne-Marie Miéville. Em seis capítulos divididos em duas partes, Godard aborda a questão da comunicação na mídia e no dia-a-dia através de entrevistas com personagens variados – operários, um grupo de mulheres, um casal em crise, um cineasta amador, e até mesmo os próprios Godard e Miéville.
Em entrevista, o diretor cita como inspiração o modelo de diálogo Socrático – fundamentado na explanação de diferentes pontos de vista, e na provocação do interlocutor até que ele se expresse plenamente. Fortemente marcados por uma visão de mundo Marxista, os diálogos trazidos pelo casal em “Six Fois Deux” se destacam não apenas pelo papel de Godard como entrevistador, mas também por seus entrevistados – especialmente quando, em alguns casos, eles rebatem a altura.
Godard e Miéville ainda fariam mais dois programas para a televisão européia, “France/tour/détour/deux/enfants” e o episódio “Deux fois 50 ans de cinéma français”, do programa “One Hundred Years of Cinema”. No segundo, a estrutura de diálogo reaparece mais claramente na forma do confronto entre o discurso otimista do ator Michel Piccoli e o ceticismo do pai da Nouvelle Vague, diante da história do cinema francês.
Referências: MACHADO, Arlindo. A Televisão Levada a Sério. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2000.
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