É difícil falar de racismo. Mas é pior ainda não falar. Falar com leveza é um feito quase de ordem mística. “Bem-Vindo a Marly-Gomont” é um filme que consegue contar uma história real, com inúmeros episódios racistas, pincelando bom humor e delicadeza. Com os ares coloridos típicos do cinema francês, é fácil acreditar que se trata de uma fábula. Mas as conexões com a realidade não o distanciam disso.
Seyolo Zantoko é um médico nascido no Congo que nos anos 70 decide se mudar com a família para o norte da França. Tudo lindo a princípio, uhul, Paris, mas logo a esposa Anne percebe que a Champs-Élysées não passa nem perto dali. Num vilarejo rural e isolado, Seyolo se vê no meio de uma disputa política pela prefeitura local e é a aposta do antigo prefeito para a próxima eleição.
Tendo que lidar com o choque de realidades e preconceitos, a família de Seyolo vai aos poucos cansando de tentar se encaixar em um local que parece não conseguir acolhê-los. A família negra é vista como uma atração de circo, algo inacreditável naquela sociedade branca e pouco diversa. Os filhos são xingados na escola, a esposa não é bem recebida, o pai não tem pacientes, pois médico negro mal podia tocar em uma mulher branca.
A antipatia e preconceito dos brancos contrastam com a receptividade, energia e felicidade dos familiares de Seyolo, que quando os visitam durante o natal, entoam o seu próprio canto cristão na igreja. “Bem-vindo a Marly-Gomont” funciona porque, diferentemente de alguns humoristas brasileiros (cof cof), entende que a piada está na ignorância, não no oprimido.
Mais um bom filme para nos fazer refletir sobre quem somos e sobre a nossa própria omissão com o que está bem mordendo a ponta do nariz. Pessoas negras ainda lutam para ocupar cargos de prestígio e considerados intrinsicamente elitistas. Marly-Gomont é bem ali na esquina. E se não conseguirmos nos analisar com alguma honestidade, dificilmente seremos melhores.
Um destaque final para a menina da família, que joga futebol bem para caramba e acaba por dobrar os habitantes da cidade a favor da permanência do pai. Aliás, força e talento que eram ignorados pelo mesmo, com algum machismo e também nobres motivos, “negros precisam estudar” repetia ele. Lembrando a fala do filho logo no início, “por que é mais complicado quando se é negro?”. Ainda não consigo responder isso, mas confio que um dia seremos um pouco mais dignos. “Bem-vindo a Marly-Gomont” lembra o filme argentino “Um Conto Chinês”, que também apresenta o choque que se dá com diferenças etno-culturais. O bom é que ambos os filmes terminam numa nota de esperança, com total ausência de cinismo, o que tem faltado em alguns roteiros recentes. Fábulas contemporâneas com ares nostálgicos podem nos ensinar mais do que a capa sugere. Relembrando, mais uma vez, que a leveza também pode ensinar.
Bom filme e hasta la vista!
Por Érika Nunes
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