“A única forma de mudar as coisas é olhar para tudo novamente de forma bem devagar”
A crença no poder transformador da arte guia Claire, protagonista do novo longa-metragem de Hong Sang-soo (“Na Praia à Noite Sozinha”, “O Dia Depois”). Interpretada por Isabelle Huppert (“Elle”, “A Professora de Piano”), a parisiense transita com atento olhar pelas ruas de Cannes. Entre um evento e outro do festival de cinema, sua inseparável polaroid registra encontros com transeuntes. A câmera de Claire conecta, portanto, a personagem à cidade, em um exercício de abertura ao fortuito, ao inesperado.
Não só a mediação das lentes, porém, se impõe à narrativa. Nos primeiros minutos do filme, Jeon Manhee (Kim Minhee) conta a uma amiga sobre sua demissão. Somente então o espectador tem acesso ao diálogo da jovem com a chefe, a produtora cinematográfica Nam Yanghye (Chang Mihee). O ato de contar ganha, assim, função análoga ao de fotografar. Da mesma forma que as imagens capturadas passam pela subjetividade de Claire, o relato resulta da percepção pessoal de Manhee.
Em uma confusa linha de acontecimentos, a francesa aproxima-se das coreanas. Conhece Yanghye, por um lado, depois de conversar com seu parceiro, o Diretor So Wansoo (Jung Jinyoung), em um café. Depara-se com Manhee, por outro, em duas distintas situações: na praia e em um coquetel. Decifrar momentos anteriores e posteriores constitui tarefa tão difícil quanto inútil. Presentificado pelas palavras ou aprisionado pelos retratos, o tempo dilatado torna-se, afinal, peça-chave da proposta do cineasta.
“Je veux parler de quelqu’un” – “Quero falar de alguém” -, repete So Wansoo, mesmo sem saber o significado. “Se eu tiro uma foto sua, você já não é mais a mesma pessoa”, pensa Claire. Em comum, as falas guardam o entendimento de Hong Sang-soo a respeito da arte. Ainda que não compreenda o idioma francês, Wansoo emociona-se com o poema de Marguerite Duras e quer memorizá-lo. A atitude indica um poder afetivo, característico também da fotografia. Esta, ao imprimir um recorte individual sobre o mundo, não o reflete em sua natureza, mas com ele rivaliza para transformá-lo.
Em concordância com essa ideia, a estratégia audiovisual adotada por Sang-soo questiona a naturalidade da representação. Ao passo que, imageticamente, o diretor privilegia zooms e reenquadramentos, sonoramente, ruídos invadem os diálogos. Se a recusa em cortar internamente as sequências explicita o processo de construção de pontos de vista, a perda de informações auditivas, por sua vez, escancara a técnica da captação.
Para além de sua inventividade formal, contudo, o cineasta sul-coreano destaca-se, ainda, como um grande diretor de atores. Kim Minhee (“A Criada”, “Na Praia à Noite Sozinha”) e Isabelle Huppert, em especial, parecem completamente à vontade em seus papéis. Estabelecem, assim, uma divertida interação, sempre mediada pela barreira linguística. Os mal-entendidos geram, desse modo, no lugar de dificuldades, oportunidades para uma natural comédia.
Com “A Câmera de Claire”, por fim, Hong Sang-soo homenageia não só a fotografia, como também a literatura, o próprio cinema e a arte em geral. O tributo ao circuito de festivais, pano de fundo para os encontros, não se restringe à França, mas atravessa o Atlântico e chega ao Brasil: na cena final, Manhee empacota um catálogo do Festival do Rio 2015. Na edição de 2017, o filme estreou nas salas de exibição nacionais, em cinco sessões espalhadas pela capital fluminense. Volta sete meses depois, em circuito comercial, e busca um público mais amplo. Seja para ver ou rever, vale o ingresso.
* O filme estreia dia 24, quinta-feira.
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