Maternidade, ética, moral, família e classes sociais. Esses são alguns temas tratados por “Uma Espécie de Família”, filme argentino de 2017 que foi exibido na 41ª Mostra de São Paulo. Obra que trabalha com delicados conteúdos, consegue ser mais um belo exemplo do já renomado cinema argentino, carregando em si várias de suas características e raízes. Semelhanças, aliás, que se encontram em muitas do audiovisual latino, de forma geral.
A narrativa é, em essência, a história de um casal, de uma família. Os cônjuges tem o sonho de ter um filho, para isso viajam até outra cidade, no interior do país, para que possam adotar um. A partir daí, o roteiro vai se desenrolando, abordando máfias, tráfico de crianças e redes criminosas. Até onde Malena, a protagonista, iria para alcançar seus objetivos? Que implicações éticas isso tem? Essas reflexões rodeiam o filme o tempo todo. Ele, inclusive, não possui grandes reviravoltas, complexidade no que quer contar. O que é mais importante aqui é aquilo que está para além dele, e não apenas isso, mas como é expressado em tela aquilo que, no roteiro, é de considerável simplicidade.
Assim, o que chama atenção a primeira vista é o foco absoluto na mulher do casal. É notável como a câmera a coloca em foco, quase sempre aproximando-nos de seu rosto, tendo-a num primeiro plano. Estamos sempre imersos em seus olhos, em sua intimidade, em seu psicológico. Quando não é o caso, o diretor filma por trás dela – ou em algum ângulo que permita ao espectador a proximidade com Malena. Isso se torna essencial ao funcionamento do longa, já que é ela que se encontra em cena a maior parte do tempo. E é dela que temos o desenvolvimento necessário à proposta dele também.
Além disso, se desenvolve com o tempo um contraponto dela com Marcela, que serve como alegoria para uma discussão importante que os realizadores propõem. Cada uma representa uma classe social diferente e, com isso, há destinos quase que irremediáveis para cada uma delas. Se o dinheiro tudo compra – e a classe alta possui tal poder aquisitivo – por que se excluiriam humanos desse esquema? Haveria dinheiro possível para constituir uma família de forma artificial e duvidosa? Por outro lado, a classe popular parece ter que arcar com o fardo de ter que ser aquilo que lhes é imposto por seu contraponto. Nessa obra, os reflexos de uma sociedade de classe são muito bem trabalhados pela antítese das duas personagens. A atuação de ambas é digna de nota e é responsável por boa parte do mérito dessa questão.
Para dar um tom cru e realista para o que se passa em tela, há uma forte preocupação por um tom verissimilhante às cenas. Consecutivamente, o filme conta com longas sequências que não mostram pressa de cortar, a montagem se dá de forma bastante sutil. Ainda nesse aspecto, praticamente não existe trilha sonora, encontrando-se bom número de momentos com “a câmera na mão”. Ademais, o fato de ser um filme rodado em locações, na maior parte do tempo, ajuda nessa construção de mundo. Tudo é meio sujo, meio decadente, meio abandonado. Os cenários do interior da Argentina são reais, e por isso acabam refletindo muito do que os personagens são ou retratam. Muitos tons pastéis e foscos também reforçados na fotografia e ajudam a dar essa sensação, vale mencionar.
Por fim, “Uma Espécie de Família” se estabelece como bom estudo de sociedade, através de seus personagens e de sua contida narrativa. Não tem grandes pretensões e nem se deixa levar por ideias megalomaníacas. Dentro do ótimo cinema argentino, cria uma obra que privilegia a introspecção e o questionamento. Consegue ser complexo na medida em que se propõe e executa suas ideias com bastante eficiência.
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