“Tem uma favelinha no meio disso tudo.”
A frase em destaque é dita pela primeira personagem feminina que aparece em “Santo Forte”. O documentário, do ano de 1999 e dirigido por Eduardo Coutinho, se aventura por águas cinzas brasileiras: a nossa espiritualidade. Espiritualidade essa que é miscigenada, de influências múltiplas e resultado da exploração de povos vulneráveis. A história se passa em uma favela carioca, Vila Parque da Cidade.
O catolicismo, trazido pelos nossos ancestrais portugueses, não parece ter coberto a cara do Brasil, que ecoa desde nossas raízes indígenas. Nós gostamos de um misticismo, seja ele qual forma tome. A coragem de Eduardo Coutinho estava em não se esquivar de descortinar a forma original do documentário. Documentários não são retratos da realidade, mas construções autorais. A beleza do cinema de Coutinho estava em conseguir adentrar histórias periféricas sem parecer diminui-las. A câmera é sempre invasiva e nos tira de nosso funcionamento normal. Coutinho expõe suas perguntas e interação dos entrevistados com equipe como quem não teme o que é e o que faz.
A obra do Coutinho é vasta e contém diversas obras-primas, entre elas “Jogo de Cena” (já mencionado aqui na coluna), “Cabra Marcado para Morrer” e “Edifício Master“. “Santo Forte” configura entre as melhores obras dele, não por necessariamente apresentar dados novos, mas pela delicadeza com que Coutinho pincela o bate-bola com seus personagens. Religião é um fato social (leiamos a obra Durkheim) e para muitas pessoas é um tópico intocável. “Religião não se discute” é o que muita gente gosta de bradar para evitar mais desdobramentos. Mas é impossível pensar em construções sociais sem visitar a nossa tradição religiosa. Religião, hoje, decide eleição. E por mais que alguns políticos gostem de afirmar como um mantra que religião e política não se misturam, elas são indissociáveis no Brasil. Onde o Estado falta, a religião entra, e não podemos perder a delicadeza de notar isso.
“Santo Forte” não é sobre questões políticas, porém. Ele tem como ponto de partida a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, que trazia à tona o Brasil compulsoriamente católico. De cara o documentário abre com um marido relatando sobre as incorporações que a esposa sofria ao dormir. Segundo ele, uma das entidades queria matá-lo. Mas em seguida uma entidade mais gentil, a quem ele chama de “vovózinha” deu instruções mais claras sobre como proceder. O sincretismo religioso brasileiro não é somente sobre mistura. Também é sobre como a nossa formação social e cultural se deu através da subjugação do que vinha daquele que era explorado e escravizado. No Brasil, sim, até hoje, as religiões de matriz africana sofrem um notável preconceito. Preconceito étnico e racial também, é claro, não muito distante do nosso passado de evangelização dos indígenas. Evangelizar é um termo bonito que significa tirar identidade de um povo. Por isso “Santo Forte” não poderia ter um nome melhor. Ele também é sobre a resistência das religiões de matriz africana, que não podem ser exorcizadas de quem somos.
Nem mesmo o Papa, um símbolo antológico do catolicismo, pode mascarar que aqui não somos tão branquinhos. Nem todos os templos são de ouro no Brasil. Ainda bem!
Podemos encontrar “Santo Forte” no Youtube. Assistamos sem preconceitos.
https://www.youtube.com/watch?v=1JwTqW9BQFg
(Legenda: Eduardo Coutinho falando sobre Thereza, personagem entrevistada no filme. Segundo ele “documentário não é o jogo da verdade, é o jogo da fábula.“)
Por Érika Nunes
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