O rap nacional está configurando grande reforço positivo no cenário musical. Encontramos com bastante freqüência letras maduras que refletem crescimento individual, bem como a promoção de um ambiente social favorável para todos. Agora falando unicamente do sudeste, cidades como Rio de Janeiro e São Paulo têm alguns espaços públicos tomados por rappers e fãs dessa vertente promovendo um encontro cultural, troca de conhecimentos através de apresentações dos mc’s e batalhas de rap entre eles.
Mas veja bem, não vemos com freqüência mulheres na cena. Ao pensar em artistas que fazem rap lembramo-nos de muitos nomes, masculinos. Precisamos igualmente atribuir o devido valor ao trabalho realizado pelas mulheres no rap e o que elas têm a dizer através de suas rimas. A começar por Negra Li.
Negra Li compôs o grupo RZO (Rapaziada Zona-Oeste), grupo natural de São Paulo. Desde nova foi estimulada musicalmente participando inclusive de corais de igreja, em sua adolescência se inclinou para o rap. Ao compor suas rimas, Negra Li expõe suas idéias e visão social, sempre inclinada por valores que devem ser salientados e construídos em outras pessoas. Em “Ei Mundo Jovem”, Negra nos lembra:
“Como pode o homem viver e esquecer o futuro?
Sabe que ele planta hoje amanhã os jovens que colherão os frutos
Visam o poder, fama, lucro, dinheiro sujo. É inútil.
Sabedoria é bem melhor do que isso tudo. É o nosso estudo.
Pra gente mudar o mundo é só estar junto. Não é pedir muito.
Basta ceder um pouco, respeitar o outro, amarem todos, ser justo.
Na lembrança a infância, inocência de criança é a esperança.
É tempo de mudança, confiança.(…)”
Palavras que infelizmente soam como atemporais. As épocas mudam, porém o erro apontado em canções como essa parece se tornar mais freqüente mesmo que já estejamos colhendo os frutos de atitudes egoístas tipicamente presente em sociedades tão capitalistas como a nossa. Uns desses frutos são cantados por ela na música “O Menino”. A realidade de uma criança que nasce e não tem oportunidade de acessar a educação, não pode acessar a própria infância ao perdê-la sem estudos e exercendo a função de vender balas no trem. Negra Li já cantou com Nando Reis, Charlie Brown Jr, Gabriel o Pensador, Pitty, entre outros.
Chegando a Curitiba, Karol Conka entrou na vertente do rap até sem querer pois escrevia poemas e dessa forma percebeu que fazia rap. Sentiu necessidade em soltar a voz explicando que existem coisas que precisam ser ditas. Foi ganhadora do Prêmio Multishow na categoria Revelação e já foi citada na revista Rolling Stones como artistas que merecem ser ouvidos, tocando inclusive na rádio BBC. O principal impulso foi a participação em um concurso na escola. Na ocasião, além de ter sido a única menina a se inscrever, Karol compôs um rap e inclusive ganhou o concurso. Além desse, realizar parceria com o rapper Projota também impulsionou a carreira de Karol. Alcançou mais visibilidade e oportunidades ao trabalhar com o produtor Nave, tendo como principal objetivo agregar sororidade com batidas do rap. Dividiu palco com Racionais MC’s, Marcelo D2, Emicida, entre outros , além de gravar a música “Até O Amanhecer” com Luiz Melodia. Karol Conka expõe em algumas entrevistas as dificuldades que viveu como negra e pobre dependente da educação pública. Foi alvo de muitos preconceitos raciais, de alunos e professores. Suas composições refletem bastante temas como o empoderamento feminino e crenças sociais desajustadas que geram cobranças de um suposto ‘lugar’ da mulher na sociedade como um todo.
“Muitas se sentem sobrando
Sem estímulos na vida algumas seguem se enganando
Sempre existirá aquelas que fazem a diferença
Não pensam em recompensa
Que tem caráter presença
Sempre te ganham licença
Chegam com classe decência
Tem argumentos propensos
Medem suas conseqüências
Milhares já muito mais querem sempre um pouco mais
Enquanto outras milhares não sonham nem correm atrás
Caem no comodismo qualquer coisinha já satisfaz
Falta de realismo acredita que aqui ninguém faz
No país rico de beleza misturado com pobreza
Meninas se fantasiam negando suas naturezas
Cobertas de incertezas com medo se sentem presas
Escondem a esperteza sonhando com a realeza(…)”
Assim diz Conka em sua canção “Marias”. Ao escutar as músicas de Karol Conka rapidamente pode-se notar o quão importante é sua contribuição no rap nacional.
De Jacareí veio Tássia Reis. Sua carreira teve início ao participar de 3 faixas do grupo de rap AXL. Subiu ao palco juntamente a Kamal para fazer Freestyle. Nessa ocasião, subiu ao palco para cantar pela primeira vez, tendo em vista que já experimentava essa vivência mas como dançarina. Também começou a cantar rap no intuito de expor seus escritos. Suas rimas trazem mensagens baseadas no feminismo e fala até de fatores sociais que são verdadeiros opressores emocionais/psicológicos. Em 2013 lançou sua composição “Meu RapJazz”. A princípio a música foi produzida pelo produtor Esquina da Gentil, para uma mixtape que reunia outras mulheres. Essa música alcançou 3.000 visualizações em dois dias. Com clipe, 10.000 visualizações em um dia. Essa foi a primeira música que gravou e primeiro single oficial. Na letra de “Afrontamento”, Tássia nos joga toda realidade ácida que ainda deixamos rolar solta;
“Quer saber o que me incomoda, sincero
É ver que pra noiz a chance nunca sai do zero
Que se eu me destacar é pura sorte jão
Se eu fugir da pobreza
Eu não escapo da depressão
Um quadro triste e realista
Na sociedade machista
As oportunidades são racistas
São dois pontos a menos pra mim
É difícil jogar quando as regras
Servem pra decretar o meu fim
Arrastam minha cara no asfalto
Abusam, humilham, tiram a gente de louco
Me matam todo dia mais um pouco(…)”
Dói só de ler, não? Imagina viver. Não, não deveriam ainda nascer pessoas sendo submetida a tanta limitação. A cantora foi influenciada desde Jackson 5 até RZO. Suas rimas são colocadas não só em batidas de rap, mas inclusive em levadas mais próximas ao Jazz.
Também em São Paulo nasceu Lurdez da Luz. Está no palco desde o início dos anos 2000, junto ao grupo Mamelo Sound System. Abrindo shows importantes como de De La Soul e Jurassic Five. Ganhou prêmios como o projeto Rumos do Itau cultural, Oi Futuro Ipanema com a participação de Criolo e foi contemplada com um projeto de turnê por 9 capitais do Brasil pelo Natura Musical. Suas letras retratam a realidade que sempre teve desabafos de vivências sociais e experiências pessoais. Em 2014 lançou o disco “Gana Pelo Bang”. O disco se divide entre produções do Stereodubs responsáveis pelo sucesso Pretin de Flora Mattos, Nave que produziu faixas de Marcelo D2 e o disco de estréia de Karol Conká.
“Arco-íris na íris, sou Afrodite, sou Ísis
Sobrevivendo à zica então burlando as crises
Até mesmo a tal da crise mundial
Sou verde e amarelo, é nacional
Espacial, feito de preto e prata
Cor de céu, cor de mar, cor de terra e de mata
Miçanga, purpurina, lantejoula, canudilho
Se essa rua fosse minha, eu faria o ladrilho
Inspirado em Galdi, só pra ver você passar
Ilusão é cor de quê? Eu não paro de pensar
Que se a estampa da gravata fosse menos atraente
Se teria até passado batido pela minha lente(…)”
Trecho da música “Colorida” que reflete bem a sinceridade da artista em suas composições. Produziu o disco com beatmakers que deram muita vida as letras com graves pulsantes e marcantes.
Em Brasília nasceu Flora Matos. Ela é uma das principais MC’s do Brasil há muitos anos. Tempos inclusive em que pouco se sabia e falava sobre o feminismo e empoderamento feminino, deixou de lado bem rápido a história de o rap ser um universo somente dominado por homens. Criada em uma família de músicos, subindo aos palcos pela primeira vez com a banda Acarajazz aos 4 anos, na qual seu pai, Renato Matos era compositor. Em 2006, começou a fazer shows acompanhada do DJ Brother, fazendo com que recebesse o prêmio de melhor cantora do ano de Brasília. Com 18 anos mudou-se para São Paulo, pois havia recebido o convite para colaborar com KL Jay em um remix da faixa “véu da noite”, da cantora Céu. Flora também gravou uma mixtape em parceria com a Stereodubs, fez parcerias com MV Bill, Rael e Don L.
Em 2009 lançou seu disco “Flora Matos vs. Stereodubs”, contendo uma de suas canções de maior sucesso nacional, “Esperar o Sol” e também “Pai de Família” que tocou na BBC de Londres.
“Sabe o que que é?
Me apaixonei, por quem? Por mim
É, solução que eu procurei
Tava aqui
Quem me disse isso eu não sei
Descobri
Eu que tô, uô, olha aqui
E sinto ela, acho que finalmente me vi
Solução
Que há tanto tempo eu procurei
Tava aqui
Quem me disse isso eu não sei
Descobri
No meu dom
Há tanto tempo eu me encontrei
Mc
Quem me disse isso eu não sei
Mereci
Chateou, uô, olha aí, se sentiu mal
Se olhe e transmita o amor pra si(…)”
Se impor dessa forma em uma sociedade machista é um ato muito corajoso sim que deve ter seu valor reconhecido igualmente. Há outras verdades sendo ditas por muitas mulheres inseridas em ‘universos’ majoritariamente masculinos até então. Desconstruir essas idéias é uma responsabilidade de todos.
Por Letycia Miranda
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