Mia Couto é o pseudônimo de António Emílio Leite Couto, biólogo e escritor de Moçambique. “Terra Sonâmbula” é o seu primeiro romance, publicado em 1992, que ganhou o Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995, sendo considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Aqui, procurarei falar sobre o livro, trazendo passagens e um contexto histórico.
Em “Terra sonâmbula”, por mais fantásticas que sejam as situações e elementos que Mia Couto cria, seu mundo narrado ainda é um bem real. Seu palco é Moçambique, mas sua essência é tão comum a suas nações vizinhas que poderia ser uma história de toda a África – por que não também?, de todo o mundo.
Só é possível afirmar isso, pois seu tema é demasiado comum e toda raça humana: a guerra. Claro que sua guerra é algo mais particular, porém cada guerra no mundo tem um elemento que Mia Couto nos traz.
Seu livro narra duas histórias paralelas de dois meninos, senão de fato crianças, ao menos espiritualmente o eram. Isso porque, além de discutir tantos temas como: a xenofobia, o estupro, a iniciação sexual, a inocência, a herança escrava – por exemplo em “Nem Quintino nunca vira antes ambos pés de seu patrão”[1] -, como são fortes os costumes, rituais e superstições que dão segurança a seu mundo, explicação, por exemplo:
“- O que é isso, vovó?
– É a água chorando.
– E por que chora?
– A água chora com pesar de uma viúva que perdeu seu marido, vítima de maldição.
– E essa viúva é quem, vovó?
– Não sei, meus filhos, essa mulher parece já morreu, faz conta foi há tantíssimo tempo.”
Mas também inúmeras vítimas, o escritor de Moçambique fala principalmente sobre o interior do ser humano.
De fato, ele fala sobre a guerra, como em:
“- Tio, me sinto tão pequeno…
– É que você está só. Foi o que fez essa guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.”
E em: “Disse que a demora já era demasiada. A procura do filho não iria resultar. A terra é imensa, a guerra é maior ainda.”
Assim como também fala do costume e banalidade do guerrear e da morte, numa sociedade que – analogamente a “1984”, já não vê início e fim à guerra.
“Espreitei o corpo na distância. Realmente o homem estava escurecido, dessa cor estagnada dos muchongos. E a corda, para em sua mão, o que seria? O mesmo miúdo me contou: o homem estava a fazer uma corda para se enforcar. Dia e noite enrolava o sisal sem nunca terminar a obra. Já o inutensílio tinha o comprimento de uma porção de metros. Não chegou a usar, não se pendurou. Faleceu assim mesmo, razões de dentro. A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.”
No entanto, discorre sobre tal estado usando uma das mais poéticas das linguagens, como em:
“Me puxou para o assento com força, os desempregados olhos confirmavam sua cega decisão de me reter. Por fim, vendo-me vencido, soprou aliviada como se escapassem reticências de sua alma.”
“Longe um rádio machucava o silêncio.”
“Quintino experimentou umas palavras, sílabas de saliva.”
“Seu rosto piscou.”
“O português costura as mãos no escuro dela e Salima cede num arrepio confuso. “
“O rosto pálido se madrugava, recuperado das memórias de antepassada vida.”
E também:
“Mas Carolinda me entregava essa doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me afagavam, em sua arrependimento. Aquele momento confirmava: o melhor da vida é o que não há-de vir”.
Suas expressões e metáforas mostram uma perspectiva única de seu universo e talvez uma que só poderia ser representada na língua portuguesa. Aqui não seria demais dizer que a literatura lusófona encontra uma de suas mais fortes expressões.
E justo a beleza e o fantástico são o filtro que apenas um olhar jovem do mundo poderia dar. Entretanto, não somente isso, mas um olhar simultaneamente perdido no universo que se está projetado sem explicação, causa e destino. Ambos os protagonistas são herdeiros de uma não-localidade generalizada. Num país sob guerra, paralelamente, filhos são abandonados, enterrados vivos, criados por tio ou mesmo estranhos. Na guerra, as relações mais básicas desaparecem e parecem de fato nunca mais terem existido. De certa forma, se está assim perdido e aprisionado.”
“- Lhe vou confessar miúdo. Eu sei que é verdade: não somos nós que estamos a andar. É a estrada.”
“Matimati era um abafado lugar, uma prisão para seu desejo de sonhar.”
“Emigrara par um naufragado barco e ali ficara.”
Nessas condições, parece restar-lhes apenas uma esperança genérica, que não passaria de uma tênue ilusão para o próprio desespero.
“- Hoje é domingo, amanhã também.”
“Não é o tio que sempre repete: qualquer coisa vai acontecer?”
Todavia, em “Terra sonâmbula”, apesar de toda essa face que poderia-se enxergar como negativa do mundo, Mia Couto nos mostra também um outro lado com Tuahir, tio de Muidinga, um dos protagonistas, o de que em meio a tanta perdição, ainda é possível achar um objetivo, uma meta, traçar-se um destino, pois sempre é possível no próprio perder-se achar para si um futuro, isto é, o próprio caminho.
“Nesse machibombo [carro] parado nós não paramos de viajar.”
Em muitas pinturas, os escravos são discerníveis dentre os personagens por estarem descalços.
Por Paulo Abe
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