Uma versão “nem tão” ousada do amado clássico
Vira e mexe Hollywood resgata alguma produção para trazer à tona um remake. Se não for isso, será uma continuação, um prequel, um spin-off ou até uma nova releitura, que é o caso de “A Cor Púrpura” (The Color Purple).
O livro, originalmente lançado em 1982, escrito pela brilhante escritora e ativista Alice Walker, lhe rendeu, em 83, dois dos maiores prêmios literários dos Estados Unidos, o Pulitzer e o Nacional Book Award, ambos na categoria ficção. Em 1985, o livro ganhou sua adaptação para as telas, tendo seu roteiro escrito por Menno Meyjes, com a supervisão da Alice Walker, e dirigido por Steven Spielberg. Indicado a 11 Oscars em 86, mesmo ano que o livro ganha sua primeira edição no Brasil, o longa não levou nenhuma estatueta e gerou inúmeras controvérsias na época. Ao longo dos anos, tornou-se um clássico cinematográfico e fez pelo menos três gerações se emocionarem com a história de Celie, vivida pela Whoopi Goldberg.
Em 2005, o livro torna-se um musical da Broadway, em Nova York, onde foi indicado a 10 Tonys Awards. A produção seguiu em cartaz até 2007 e de 2008 a 2012 fez uma turnê nacional pelos Estados Unidos. Em 2013 ganhou uma versão em Londres e no final de 2015 a trama volta musicada aos palcos estadunidenses, ganhando 2 prêmios Tony e o Grammy de Melhor Álbum de Teatro Musical. Depois disso, veio as versões internacionais do espetáculo na África do Sul (2018), na Holanda (2018), no Canadá (2019) e no Brasil (2019 – 2023), essa com a direção geral de Tadeu Aguiar e adaptação de Artur Xexéo.
Esse breve resumo histórico é só para quem não conhece, ou não sabia, compreender o tamanho e força que essa narrativa carrega e, claro, para introduzir nossas considerações para a nova versão – Musical – que estreou nos Estado Unidos no final do ano passado e que chega agora às telas brasileiras. Mas, antes de mais nada, “apegados” ao clássico: É preciso esquecê-lo um pouco, embora as comparações possam vir a ser inevitáveis.
A trama se mantém, Celie (Phylicia Pearl Mpasi) vive sendo abusada por seu pai Alfonso (Deon Cole), tendo dessa relação dois filhos que são tirados de seu convívio e, não muito depois, é obrigada a se casar com o “Mister” (Colman Domingo). Cuidando da casa e dos três filhos de seu marido, a relação não é muito diferente se comparada ao que vivia com o Pai, pois ela continua sendo abusada física e verbalmente, todos os dias. Quando sua irmã Nettie (Halle Bailey) foge do abuso sexual de seu pai e procura abrigo na casa da irmã, “Mister” tenta o mesmo e por não conseguir, expulsa Nettie a base de tiros, separando as irmãs. Com o passar de 40 anos, muitas histórias e personagens, vamos compreendendo e vivendo a realidade sofrida de Celie (Fantasia Barrino), sempre na esperança de um dia ser livre e reencontrar sua irmã e seus dois filhos.
O roteiro “escrito” com seis mãos, Marcus Gardley, Marsha Norman e Alice Walker, segue o mais fiel possível do livro e do musical, mas é sempre bom frisar que estamos falando de uma adaptação. Até aí, nada de novo no paraíso, exceto que, por estarmos falando de um musical, o drama ganha contornos que trazem mais humor. O que não o torna ruim, pelo contrário, mantem sua comoção pontuada, mas o longa acaba sendo um pouco mais leve, emocionalmente, que seu antecessor.
É na direção de Blirz Bazawule (“Black Is King”) e na edição de Jon Poll (O Rei do Show) que o negócio desanda. Se tratando da direção de elenco, Blirz tem sua notoriedade, quando estão atuando, sua condução é bem pontuada, tem seus maneirismos teatrais e traz à tona o melhor que eles podem oferecer. E muitos oferecem tanto que transbordam a tela, mas disso falaremos logo mais. Se tratando das cenas musicais podemos dizer que é como se ele não soubesse exatamente o que fazer. As coreografias e os cenários, com seus objetos, davam a ele milhões de possibilidades de eixos de câmera, de enquadramentos, de movimentos e etc. E o que temos em sua grande maioria são eixos fixos, alguns mal enquadrados, e com cortes e junções – olha nosso Jon Poll aí – que enfraquecem o ritmo e a potência que um musical, com essa história, pode nos proporcionar.
Por alguns momentos, essas sequências musicais são alusões à mente da protagonista que foge da sua realidade para viver o encanto, ou transforma o bruto do dia a dia na beleza fugaz de um número, mas na tela, tornou-se momentos nada memoráveis. Cintando um desses, spoiler alert, quando Celie está ajudando no banho de Shug Avery (Tarji P. Henson), sua mente transcende e a protagonista se vê em cima do gramofone tocando um disco e observando Shug na banheira. A direção escolheu criar tudo em efeito, ao invés de filmar em macro o objeto e aplicar as atrizes, deixando a cena extremamente artificial e perdendo seu efeito, onde introduz o início de uma relação de amizade e descobertas para nossa protagonista.
A cinematografia de Dan Laustsen, surpreendeu e não foi positivamente. Depois de trabalhos como “O Beco do Pesadelo”, “A Forma da Água” e “John Wick”, podemos dizer que o resultado é oscilante entre bom e preguiçoso. Citando um exemplo, em um solo da Celie, onde ela canta olhando para câmera, por consequência olhando para o público, ele usa a luz recortando a silhueta da cabeça e do tronco da protagonista e deixa seu rosto parcialmente iluminado, em meia lua. O resultado visual é no mínimo desanimador.
O Designer de Produção de Paul D. Austerberry (It – Capítulo II) com a Direção de Arte de Andi Crubley (Eu, Tonya) e Carla Martinez (Mansão Mal-assombrada), junto ao Figurino de Francine Jamison-Thanchuck (O Nascimento de Uma Nação), também tem seus altos e baixos. Mais altos do que baixos, se olharmos como eles empregam a teatralidade, a plasticidade do teatro, na tela. Mas é preciso tomar cuidado com o excesso ou a completa falta de vivência, que é o que acontece com o chapéu da Nettie, quando ele “reaparece” na história.
Chegou a hora de falarmos o que carrega a produção nas costas: as canções e o elenco. Para quem gosta de soul, gospel, R&B e, principalmente, musicais, as canções são um deleite para se ouvir no repeat, disponíveis aqui. Seja em inglês, ou em português para quem teve o prazer de assistir a peça, as canções de Brenda Russel, Alle Willis e Stephen Bray, ou as originais de Kris Bowers (Bridgerton) valem cada segundo. De destaque podemos citar “Mysterious Way”, “Hell No!”, “Push Da Button”, “I’m Here”, a título “The Color Purple” e “Girls” que conta com a participação da Ludmilla.
E, por fim, o mais importante, vamos ao elenco que transborda, transcende e encanta. Usando uma expressão popular: É um trem que dá gosto demais de ver! O prazer, o tesão de estarem dando vida e cantando sobre esses personagens é o gatilho da emoção como expectador. É como se estivéssemos num banquete com tudo que você mais gosta. Bem pontuados, tom, sotaque, maneirismos, humor e emoção. Agora, aqui, citaremos somente as musas.
Tarji P. Henson, como Shug Avery, traz seu carisma natural a personagem, algo que a Margaret Avery, no mesmo papel em 85, não trouxe, pois ela apresentou – belissimamente – uma mistura de classe e decadência para a personagem na época. Tarji, nessa versão, vive uma bon-vivant que pontua humor, acidez, sex appeal e uma seriedade no olhar muito particular. Danielle Brooks, vive Sofia, papel lhe rendeu a indicação ao Oscar 2024 de Melhor Atriz Coadjuvante. Interpretado originalmente pela Oprah Winfrey (produtora dessa versão), Brooks, que reprisa seu papel do espetáculo no longa, é impecável em todos os sentidos. Seja cantando ou interpretando sequencias de humor ou drama, chega a faltar palavras para dizer o quão encantados e emocionados é possível ficar vendo-a na tela.
Fechando o trio – que aqui será um quarteto – temos nossa Celie jovem, Phylicia Pearl Mpasi, que em pouco tempo de tela, tem um olhar tão significativo, tão doído e vibrante. Traz aquela criança interior que vê todo dia seu mundo desmoronar e ainda assim consegue manter a chama da vida e se preservar, como pode, em sua inocência. Já para a Celie adulta, esqueçam o fabuloso trabalho da Whoopi Golberg, só para poderem mergulhar na deliciosa versão que Fantasia Barrino nos entrega. É novo, é diferente e é um presente. Seu talento como protagonista traz a doçura de quem ainda acredita e tem fé em dias melhores, com a acidez e as magoas de uma vida fadada e exaurida.
“A Cor Púrpura” sem dúvidas é uma obra que atravessa o tempo, muda o “formato”, mas que nos arrebata por sua genuinidade e grandiosidade – que Alice Walker nos apresenta há tanto tempo. Dentre os temas desse, e de muitos outros trabalhos impactantes da autora, temos como pauta o racismo, o patriarcado, as carências sociais, a identidade feminina, a amor, a amizade, a empatia, as dores das perdas e a fé. A Fé de acreditar nas pessoas, num futuro melhor, na sua capacidade, nos seus desejos, nas escolhas e em Deus. Ainda que com muitos baixos, essa nova versão merece ser vista. O livro merece a (re)leitura, o clássico merece ser (re)assistido, e o musical, se voltar aos palcos, assistam! Não importa o formato, se emocionem e sejam arrebatados por toda vida que existe presente na cor púrpura.
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