“Ocupo o meu tempo escurecendo meus momentos mais iluminados, porque a claridade me incomoda.”
Uma mulher é diagnosticada com uma doença rara. Um nenúfar está crescendo em seu pulmão direito. É uma flor de lótus, uma planta aquática, que floresce sobre a água e que já está chegando a medir 1 metro.
Achou a descrição surreal?! Espere só pra conhecer o “pianococktail“, uma engenhoca que produz drinks de acordo com as notas musicais tocadas. Isso sem falar na dança que faz as pernas esticarem e paredes curvando-se ao som de jazz; um cortador de unha sendo usado para aparar as pálpebras, canos de fuzis que crescem como cenouras e uma viagem super romântica dos pombinhos enamorados envoltos em uma nuvem.
Pois é nessa pegada surrealista que a trajetória de seis amigos é contada no livro “A espuma dos dias”, um dos romances mais loucos e ao mesmo tempo mais realistas de todos os tempos.
Colin, Chick, Nicolas, Chloé, Alise e Isis vivem na Paris de 1950, ao som de muito jazz, em um clima repleto de existencialismo, como se estivessem em um filme da Nouvelle Vague.
Colin é um jovem muito rico, que não precisa trabalhar e vive de renda. Ele tem como melhor amigo, Chick, um revolucionário que tem obsessão pelo filósofo Jean Sol Partre, uma homenagem do autor a Jean Paul Sartre, de quem era amigo da vida real. Ele e Alise se casam, mas o casamento começa a ficar mal das pernas por conta do apego exagerado que ele tem por Partre. Nicolas é chef de cozinha de Colin e se apaixona por Isis, amiga de Chloé e Alise. Colin encontra Chloé, se apaixona e logo eles se casam. Mas Chloé adoece e para tentar matar a planta que habita seu pulmão, o tratamento é cercá-la de flores. Na tentativa de salvar a amada, Colin gasta toda a sua fortuna.
Do início até metade do livro, tudo é lindo, alegre, grandioso, colorido e cheio de vida. À medida que a doença de Chloé vai progredindo, o clima da história vai sendo contaminado e tudo o que era belo, claro e iluminado vai se tornando sombrio, triste e fúnebre. As cores do início vão esmaecendo e a paleta, que antes era vibrante, vai ficando desbotada, passando pelo sépia até chegar ao preto e branco. Sequer o sol penetra pelas janelas do apartamento do casal que vai encolhendo e empobrecendo até mal caber alguém dentro dele.
Escrito em 1946, pelo escritor francês Boris Vian, o livro só foi publicado no ano seguinte ainda sob o choque da morte de muitos jovens na guerra. Mas, ele usava a imaginação de uma maneira tão pessoal e caótica para explicar o absurdo da existência humana, que o livro pode ser considerado como um “experimento literário”. Nas palavras do seu mentor, Raymond Queneau, Vian produziu “o mais certeiro dos romances de amor contemporâneo e que também é uma festa de linguagem”.
No Brasil, a 1ª edição saiu 20 anos depois. Desde então o romance teve algumas outras impressões, passando por diversas editoras e sendo apresentado com diferentes capas. A publicação mais recente é de 2013, pela editora CosacNaify. Na mesma época foi lançado um filme homônimo, dirigido por Michel Gondry, o mesmo diretor de “Brilho de uma mente sem lembrança”.
Poderíamos até dizer que essa é a história de seis amigos e suas aventuras e paixões. Mas só isso não descreve o livro. Mesmo com todo o surrealismo que foi escrito, é muito mais profundo que isso. A importância de “A Espuma dos Dias” está em sua crítica. Vian não poupa nada: ciência, religião, trabalho, casamento, consumismo, fanatismo e a própria intelectualidade francesa. Tudo é ridicularizado, desmoralizado sem piedade. “Não são as pessoas que mudam, são as coisas”. Ou seja, o mundo reage de acordo com nossos sentimentos e sensações.
Boris Vian se formou como engenheiro, mas se destacou mesmo como escritor, poeta, dramaturgo, tradutor, ator, pintor, músico, crítico de cinema e Jazz. E como se não bastasse tudo isso, ele simplesmente inventou o moderno filme francês.
Por mais poetas escrevendo romances surrealistas. Sem dúvida uma inusitada e interessante combinação.
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