O escocês Eduardo Glenarvan pesca, durante uma viagem de passeio em seu barco, um tubarão-martelo e, dentro do peixe, surge uma garrafa que fora engolida pelo animal. Essa garrafa continha um bilhete com pedido de socorro em três idiomas (francês, inglês e alemão) mas a mensagem achava-se quase apagada pela ação da água, várias partes dela estavam faltando. Ao interpretarem o texto truncado, deduzem que Henrique Grant, capitão inglês do navio Britannia, sofreu com sua tripulação um naufrágio e se encontravam em perigo, na Patagônia argentina, na posse de indígenas. Diante disto, Glenarvan decide ir a Londres para que os ingleses iniciassem as buscas por seus compatriotas náufragos. Ao descobrir que os ingleses não se interessaram no resgate, ele coloca sua fortuna e navio à disposição e empreende pessoalmente a jornada para trazer Grant e seus companheiros para a Europa. Neste processo surgem duas crianças, Roberto e Maria, filhos do Capitão Grant, que integram o grupo e acompanham as buscas por seu pai. As buscas ocorrem nos mares austrais, ao longo do paralelo de 37º, pois a partir da mensagem truncada conseguia-se saber apenas a latitude do local onde os náufragos se encontravam.
“Sim, [os ingleses] recusaram-me um navio. Falaram dos gastos necessários para tal expedição. Afirmaram que o documento é obscuro, ininteligível. Disseram que aqueles infelizes já estão abandonados há dois anos e que não há possibilidades de encontrá-los. Enfim, deram todas as falsas razões das pessoas que querem recusar alguma coisa. Mas a verdade é que se lembram dos projetos do capitão. O infeliz Grant está para sempre perdido!”
Talvez o maior sucesso de Júlio Verne seja a obra Vinte Mil Léguas Submarinas. Mas poucos sabem que “Léguas” é o segundo livro de uma trilogia que começa com Os Filhos do Capitão Grant e se encerra com A Ilha Misteriosa. Portanto, se deseja ler Vinte Mil Léguas, leia os três livros na ordem correta, isso ampliará a experiência.
“Ouviu-se um grito de horror. Suspenso das garras do condor balançava um corpo inanimado — o de Roberto Grant. O condor agarrara-o pela roupa e sulcava os ares a menos de noventa metros acima do acampamento.”
A leitura do texto é bastante prazerosa. Apenas no início os personagens são um tanto superficiais e estereotipados. Mas à medida que a história se desenrola eles gradativamente ganham um ar mais palatável e começamos a nos importar com eles. A história não é tão profunda quanto O Capitão Háteras, o livro anterior de Verne, mas nem por isso deixa a desejar.
“uma vaga monstruosa despenhou-se sobre os fugitivos com ruído apavorante. Homens e cavalos, tudo desapareceu num turbilhão de espuma. A massa líquida revolveu-os em suas águas furiosas.”
Um ponto importante do enredo é que Verne trabalha a dualidade entre escoceses e ingleses. Mostra os escoceses querendo se desvencilhar de qualquer relação com seus irmãos do sul, numa ideia patriótica da Escócia que é bastante interessante. Contraditoriamente, em alguns trechos do livro o próprio narrador se refere a eles como “ingleses”, talvez por falta de atenção, talvez por julgar que, apesar do esforço dos escoceses, eles não seriam tão diferentes de seus vizinhos. De qualquer forma, os ingleses sempre tiveram o papel central de exploradores nos livros de Verne, mas em Os Filhos do Capitão Grant o autor inicia um ciclo de críticas a esta nação.
Enquanto os personagens atravessam o continente australiano Verne adianta-se em criticar e condenar a colonização inglesa, especialmente acusando os exploradores de dizimarem comunidades aborígenes, destruindo sua cultura e exterminando seus indivíduos. Isto é uma visão bastante avançada para um europeu do Século XIX. Foi necessária uma dose de coragem para Verne se colocar tão abertamente contra o extermínio de “selvagens”, algo que não provocaria protestos entre seus contemporâneos franceses. Posteriormente os crimes da colonização inglesa serão novamente debatidos nas duas sequências deste livro: Vinte Mil Léguas Submarinas e A Ilha Misteriosa.
Em sua viagem pela latitude de 37°, os personagens visitam a América do Sul, um continente que infelizmente foi menos explorado por Verne quando se olha o conjunto total de sua obra. Na trajetória, passamos pela Cordilheira dos Andes no Chile e pela Patagônia e os Pampas da Argentina. É neste local que o lobo guará, animal admirado no Brasil, faz sua participação marcante com um ataque memorável. A violência das alcateias desse animal são um perigo a ser superado pelos protagonistas.
“Dentro de pouco tempo. fez-se ouvir o ruído de suas garras, atacando a madeira já meio podre. Patas vigorosas e goelas vermelhas [dos guarás] já passavam por entre as estacas abaladas. Loucos de terror, os cavalos romperam os liames e puseram-se a correr pelo cercado.”
De resto, o livro vale a pena pela bela descrição das paisagens por onde os personagens percorrem em sua busca e pelas releituras do pedido de socorro do Capitão Grant, um fator que adiciona uma boa dose de imprevisibilidade ao roteiro. Recomendo bastante atenção ao personagem Aírton, que é extremamente bem escrito, multifacetado e importante para a obra.
“As cabanas da aldeia foram minuciosamente revistadas. Na de Tacuri foi encontrado o crânio de um homem, que fora cozido recentemente. Ainda se via nele a marca dos dentes do canibal. Acharam também uma coxa atravessada por espeto de madeira. Uma camisa suja de sangue foi identificada como pertencente a Marion. (…) Mais adiante, em outra aldeia, entranhas humanas limpas e cozidas.”
Um detalhe importante sobre os livros de Verne é não ler as versões adaptadas, infanto-juvenis. Leia apenas as traduções baseadas no texto original, sem alterações. Neste quesito, as impressões da editora Matos Peixoto, da década de 1960 e 1970 são imbatíveis. Recomendo fortemente que acompanhem a estória pelo mapa que constava das edições originais, ele ajuda bastante a seguir a narrativa pelos oceanos do Hemisfério Sul. As ilustrações originais podem ser vistas aqui.
Imagens: Divulgação/Julio Verne
Texto: Henrique Zimmermann
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