Uma viagem ao círculo ártico
O Capitão Háteras seque com a tripulação do brigue Avante em direção às regiões polares do Círculo Ártico. Háteras tem certeza de que há um caminho navegável (sem gelo) até o Pólo Norte, e está obcecado em descobri-lo. Nesta viagem a lugares congelantes e isolados, o grupo de marinheiros passará por situações de perigo e terão testados sua engenhosidade, criatividade e conhecimento científico para superarem os obstáculos que a natureza cruel do norte os submete.
“Dentro em pouco o Avante entrou em canal tão estreito, formado por dois elevados penhascos de gêlo, que suas vêrgas roçavam pela muralha, duras como granito. Pouco a pouco, foi-se metendo pelo meio de vale sinuoso, num turbilhão dos flocos de neve, enquanto os blocos flutuantes se despedaçavam, batendo uns de encontro aos outros com sinistro estrépito.”
Este livro é a união de uma história em duas partes, intituladas “Os Ingleses no Pólo Norte” e “O Deserto de Gelo”, publicadas serialmente 1864 e 1865. Foi elaborado ao mesmo tempo em que “Viagem ao Centro da Terra” era redigido, mas no caso de Háteras, Verne dá um salto na qualidade de sua narrativa e, principalmente, na capacidade de escrever bons personagens, mais profundos e interessantes. A estratégia no início do livro, de manter em segredo a finalidade da viagem do brigue Avante não funciona bem, pois o leitor percebe logo que se trata da conquista do Pólo Norte, mas manter em segredo o próprio Capitão Háteras foi bastante interessante. Isso inevitavelmente nos remete ao livro de navegação mais famoso,”Moby Dick“.
“Sabia o doutor que a palavra esquimó quer dizer comedor de peixe cru, mas sabia também que tal nome é considerado naquele país como injúria. Teve, por isto, o cuidado de chamá-los de groenlandeses.”
As comparações com “Moby Dick” de Herman Melville são inevitáveis, seja pela época em que ambos foram escritos, seja pelas semelhanças do enredo. Verne nunca chega a ultrapassar Melville na capacidade de romantizar e dar a atmosfera de poesia em seu livro. Mas pode-se notar alguns trechos em que ele consegue se equiparar ao seu irmão mais popular. Um exemplo é a habilidade de Verne na escrita do trecho em que Háteras segue para o norte, em pé no bote, em mar revolto, após a saída do Porto Altamont (capítulo 51). Outro é a obsessão de Háteras pela descoberta do Pólo Norte, semelhante à obsessão de Ahab pela caça à baleia branca. Vários outros trechos pontuais contém a mesma beleza e energia que vemos dominar a obra-prima de Melville. E isso nos traz um sentimento de injustiça com relação à baixa popularidade de As Aventuras do Capitão Háteras, pois ele é dotado de uma qualidade poética e de enredo que certamente deveria encontrar maior reconhecimento por parte do público. Não sei se Verne chegou a ler “Moby Dick”. Desconfio que sim, pois há um trecho em que os navegantes encontram uma baleia no Estreito de Melville, onde executam a caça do cetáceo, em passagem curta. Não acredito que isto seja coincidência, e o tamanho reduzido deste trecho também serviria de prova do conhecimento – e admiração – de Verne pela obra de Melville, pois o primeiro saberia que um excelente livro sobre baleias já havia sido escrito e somente restava a ele passar rapidamente sobre o tema e levar seus personagens para novas situações, não exploradas em “Moby Dick”.
“Enfim, quando, penetrando além da superfície líquida, o olhar mergulhava-se naquelas águas transparentes, não era menos sobrenatural o espetáculo daquele elemento sulcado por milhares de peixes de todas as espécies. Estes animais às vezes mergulhavam rapidamente no mais profundo da massa líquida e o olhar via-os então pouco a pouco diminuir, decrescer, desaparecer, quais espectros fantasmagóricos.”
Um outro ponto positivo de “O do Capitão Háteras” é a quantidade de reviravoltas que a história tem. Ela não é linear – nem um pouco previsível – como “Cinco Semanas em Balão”. O leitor pode até pensar que sabe para onde a história caminhará, mas certamente se enganará com alguma frequência. O sentimento de aventura, de descobrimento do desconhecido, de rivalidade entre exploradores com diferentes nacionalidades é forte e muito bem explorado por Verne. Háteras não apenas quer alcançar o Pólo e outros continentes ainda não descobertos, mas quer fazê-lo antes dos capitães de outras nacionalidades. Especialmente antes dos estadunidenses, com os quais ele trava uma disputa pessoal.
“— Antes do meu, nenhum outro navio tocou esta costa com a sua amurada. Antes de mim, nenhum ser humano pôs o pé neste continente. Ora, eu impus-lhe um nome, que há de ser conservado. — Disse Altamont, capitão norte-americano.
— E que nome é êsse? — inquiriu o doutor.
— Nova América — respondeu Altamont.
Háteras cerrou os punhos por debaixo da mesa. Mas, fazendo sôbre si mesmo violento esfôrço, logrou conter-se.”
A mim só resta lamentar que este livro brilhante não teve uma boa adaptação para o cinema. Ele é uma ótima base para uma história que mescla poesia, aventura, ação e personagens que, se bem trabalhados por um bom roteirista, seriam substrato para atuações dignas de prêmios internacionais.
“Que espetáculo o daqueles desgraçados, aos quais a dor fazia contrair todos os nervos e músculos! As pernas cobriam-se de nódoas azul-escuras. As gengivas ensangüentadas e os lábios intumescidos mal deixavam passar alguns sons inarticulados, e a massa do sangue, completamente alterada e desprovida de fibrina, não transmitia mais a vida às extremidades do corpo.”
Um detalhe importante sobre os livros de Verne é não ler as versões adaptadas, infanto-juvenis. Leia apenas as traduções baseadas no texto original, sem alterações. Neste quesito, as impressões da editora Matos Peixoto, da década de 1960 e 1970 são imbatíveis. Recomendo fortemente que acompanhem a estória pelo mapa que constava das edições originais, ele ajuda bastante a seguir a narrativa pelos mares gelados do norte. As ilustrações originais podem ser vistas aqui
Texto: Henrique Zimmermann
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